Foi no www.psisalpicos.blogspot.com (blog que, aliás, recomendo) que fui inicialmente confrontado com esta questão. Na altura, foi lançado o debate acerca da importância da sinceridade nas relações amorosas, tendo eu deixado um comentário que reproduzo aqui, agora mais aprofundado.
No mesmo debate lançou-se a ideia de que a sinceridade para com o outro implicava de forma sine qua non a sinceridade para com o próprio. A afirmação parecia lógica, mas obrigou-me a questionar: o que é ou como definir essa «sinceridade para consigo próprio»? E uma questão precedente a essa: o que é, afinal de contas, a «sinceridade»? É o mesmo que ser «verdadeiro»? Mas o «ser verdadeiro» implica consequentemente a distinção e o reconhecimento entre o que é «verdade» e o que é «mentira». E como se opera essa distinção? Para mim, é por esta última pergunta que se deve começar se se pretende uma resposta para todas as outras.
Estou convicto de que o discernimento da verdade e da mentira assenta, primordialmente, numa qualidade de crença ou convicção. E é esta qualidade (ou a ausência dela) que define a veracidade de um comportamento ou de uma afirmação (ou a sua falsidade). Por outras palavras, a verdade é, de forma última, aquilo em que se acredita. Quantas vezes não estamos perfeitamente convictos de algo que, vimos depois a saber, era completamente falso? Podemos (e devemos) depois reconhecer que estávamos errados, mas até àquela altura teríamos posto as mãos no fogo, de tão convencidos do que dizíamos! Na altura, aquela era a nossa verdade porque era nela em que acreditávamos! E com a mesma convicção como antes de Copérnico se acreditava que o Sol girava em torno da Terra!
Por exemplo, estou a ser verdadeiro quando digo a um amigo que ontem estive com a pessoa X porque estou convicto de que estive com ela e não com a pessoa Y ou Z. Da mesma forma, e alargando o exemplo, só posso aceitar Deus e a religião como verdadeiros a partir do momento em que creio neles. Inversamente, não estarei a ser verdadeiro comigo a partir do momento em que digo ou faço algo no qual não creio. A «verdade» e a «mentira» assumem, assim, um carácter extremamente subjectivo e idiossincrático. Elas não existem por si mesmas. É a nossa convicção, ou a falta dela, que as torna numa ou noutra, respectivamente.
Poder-se-ia também dizer: a qualidade do que é verdadeiro é a qualidade do que é real; por exemplo, agora sabe-se que na realidade é a Terra que gira em volta do Sol. E eu pergunto: o que é, então, real?
Para Immanuel Kant existiam duas formas de realidade: o númeno ou realidade numénica e o fenómeno ou realidade fenomenológica. Segundo o filósofo, a única realidade que nos era passível de conhecer seria a realidade fenomenológica, enquanto o númeno nos era inalcançável. Tentarei, agora, com base no que se conhece do psiquismo humano, tornar esta distinção mais inteligível e actual.
O ser humano possui um aparelho pelo qual se conhece a si próprio e ao mundo. Esse é, claro está, o Sistema Nervoso, que é constituído, em parte e muito basicamente, por um sistema central que armazena, codifica e processa informação – o encéfalo –, e por um aparato de sistemas de input que captam a informação vinda do exterior – os órgãos dos sentidos. É por estes últimos que começa a nossa percepção da realidade: vemos, ouvimos, cheiramos, tacteamos e saboreamos o mundo. Os órgãos dos sentidos produzem então sinais que são depois interpretados no encéfalo, que os armazena e processa. Desta forma, construímos a realidade pelo nosso sistema nervoso. Nunca temos uma percepção exacta dela, mas sim uma interpretação cuja aproximação à realidade numénica desconhecemos. A «nossa» realidade é, então, um processo e uma aproximação, em constante modificação e reestruturação; ela é, antes de mais nada, um «produto cognitivo».
«Verdade» e «mentira» são também, e por corolário, inteiramente produtos cognitivos, nos quais a sociedade impôs uma atribuição de valor. É por isso que as pessoas honestas são consideradas «boas pessoas» e as mentirosas são «más». É também devido a isso que nos ensinam, desde pequeninos, que «mentir é feio». E é também por isso que atribuímos importância à sinceridade numa relação amorosa.
Não considero correcto, como tal, entender a «verdade» e a «mentira» como dois atributos fechados em si próprios. Eles são conceitos, o resultado de uma elaboração mental, extremamente complexa, e sempre particular de cada indivíduo.
É claro que existem «verdades» socialmente difundidas. Todos sabemos, hoje em dia, que a Terra gira em torno do Sol. Mas mesmo essas «verdades» só o são porque se deu previamente um trabalho de elaboração cognitiva (por meio da aprendizagem), que lançou a nossa convicção. Nestes casos, a «verdade» é um bem comum e universalmente partilhado, porque transmitido culturalmente, de geração em geração.
Mas o nosso conceito daquilo que é «verdade» é, contudo, inteiramente nosso. O que é verdade para mim poderá não o ser para o outro. Porque a minha verdade é aquilo em que eu acredito, quer tenha sido educado para crer, quer tenha crido com a experiência. E tanto a minha educação como as minhas vivências serão, sempre, diferentes das desse Outro.
No mesmo debate lançou-se a ideia de que a sinceridade para com o outro implicava de forma sine qua non a sinceridade para com o próprio. A afirmação parecia lógica, mas obrigou-me a questionar: o que é ou como definir essa «sinceridade para consigo próprio»? E uma questão precedente a essa: o que é, afinal de contas, a «sinceridade»? É o mesmo que ser «verdadeiro»? Mas o «ser verdadeiro» implica consequentemente a distinção e o reconhecimento entre o que é «verdade» e o que é «mentira». E como se opera essa distinção? Para mim, é por esta última pergunta que se deve começar se se pretende uma resposta para todas as outras.
Estou convicto de que o discernimento da verdade e da mentira assenta, primordialmente, numa qualidade de crença ou convicção. E é esta qualidade (ou a ausência dela) que define a veracidade de um comportamento ou de uma afirmação (ou a sua falsidade). Por outras palavras, a verdade é, de forma última, aquilo em que se acredita. Quantas vezes não estamos perfeitamente convictos de algo que, vimos depois a saber, era completamente falso? Podemos (e devemos) depois reconhecer que estávamos errados, mas até àquela altura teríamos posto as mãos no fogo, de tão convencidos do que dizíamos! Na altura, aquela era a nossa verdade porque era nela em que acreditávamos! E com a mesma convicção como antes de Copérnico se acreditava que o Sol girava em torno da Terra!
Por exemplo, estou a ser verdadeiro quando digo a um amigo que ontem estive com a pessoa X porque estou convicto de que estive com ela e não com a pessoa Y ou Z. Da mesma forma, e alargando o exemplo, só posso aceitar Deus e a religião como verdadeiros a partir do momento em que creio neles. Inversamente, não estarei a ser verdadeiro comigo a partir do momento em que digo ou faço algo no qual não creio. A «verdade» e a «mentira» assumem, assim, um carácter extremamente subjectivo e idiossincrático. Elas não existem por si mesmas. É a nossa convicção, ou a falta dela, que as torna numa ou noutra, respectivamente.
Poder-se-ia também dizer: a qualidade do que é verdadeiro é a qualidade do que é real; por exemplo, agora sabe-se que na realidade é a Terra que gira em volta do Sol. E eu pergunto: o que é, então, real?
Para Immanuel Kant existiam duas formas de realidade: o númeno ou realidade numénica e o fenómeno ou realidade fenomenológica. Segundo o filósofo, a única realidade que nos era passível de conhecer seria a realidade fenomenológica, enquanto o númeno nos era inalcançável. Tentarei, agora, com base no que se conhece do psiquismo humano, tornar esta distinção mais inteligível e actual.
O ser humano possui um aparelho pelo qual se conhece a si próprio e ao mundo. Esse é, claro está, o Sistema Nervoso, que é constituído, em parte e muito basicamente, por um sistema central que armazena, codifica e processa informação – o encéfalo –, e por um aparato de sistemas de input que captam a informação vinda do exterior – os órgãos dos sentidos. É por estes últimos que começa a nossa percepção da realidade: vemos, ouvimos, cheiramos, tacteamos e saboreamos o mundo. Os órgãos dos sentidos produzem então sinais que são depois interpretados no encéfalo, que os armazena e processa. Desta forma, construímos a realidade pelo nosso sistema nervoso. Nunca temos uma percepção exacta dela, mas sim uma interpretação cuja aproximação à realidade numénica desconhecemos. A «nossa» realidade é, então, um processo e uma aproximação, em constante modificação e reestruturação; ela é, antes de mais nada, um «produto cognitivo».
«Verdade» e «mentira» são também, e por corolário, inteiramente produtos cognitivos, nos quais a sociedade impôs uma atribuição de valor. É por isso que as pessoas honestas são consideradas «boas pessoas» e as mentirosas são «más». É também devido a isso que nos ensinam, desde pequeninos, que «mentir é feio». E é também por isso que atribuímos importância à sinceridade numa relação amorosa.
Não considero correcto, como tal, entender a «verdade» e a «mentira» como dois atributos fechados em si próprios. Eles são conceitos, o resultado de uma elaboração mental, extremamente complexa, e sempre particular de cada indivíduo.
É claro que existem «verdades» socialmente difundidas. Todos sabemos, hoje em dia, que a Terra gira em torno do Sol. Mas mesmo essas «verdades» só o são porque se deu previamente um trabalho de elaboração cognitiva (por meio da aprendizagem), que lançou a nossa convicção. Nestes casos, a «verdade» é um bem comum e universalmente partilhado, porque transmitido culturalmente, de geração em geração.
Mas o nosso conceito daquilo que é «verdade» é, contudo, inteiramente nosso. O que é verdade para mim poderá não o ser para o outro. Porque a minha verdade é aquilo em que eu acredito, quer tenha sido educado para crer, quer tenha crido com a experiência. E tanto a minha educação como as minhas vivências serão, sempre, diferentes das desse Outro.
4 comentários:
Pois é, como diz e muito bem, a nossa Verdade nunca é igual à do Outro, porque todos nós temos Realidades diferentes. A Realidade Interna de cada um é construída a partir daquilo que é percepcionado da Realidade Exterior.
Concordo quando diz 'Nunca temos uma percepção exacta dela[realidade], mas sim uma interpretação (...)', e é importante não esquecer as falhas dos Processos Cognivos, que estão estritamente relacionados com a nossa Realidade Emocional. As nossas vivências emocionais têm uma influência directa na capacidade mnésica, que muitas vezes altera a Realidade exterior, para uma Realidade Interna muito diferente.
Assim, o acontecimento X que vivenciei ontem e que me foi traumático ou marcante, pode ter sido processado no interno, deturpadamente, e hoje vai ser evocado mnésicamente como acontecimento Y. Isso leva a que a minha Verdade se torne Mentira para o Outro, mas na prática tratam-se somente de Verdades diferentes!
Este assunto já foi alvo de diversas reflexões de minha parte, visto que me fascina esta conexão entre processos cognitivos e emocionais.
Como se costuma dizer na nossa área: o Ser Humano não é constituído por partes, mas sim por um Todo!!
Sem dúvida, Filipa. Chamou a atenção para um ponto importantíssimo:a intrincação dos processos cognitivos com os processos emocionais. O «Erro de Descartes» continua válido, não acha? Emoção e razão são duas faces de uma mesma moeda. Um e outro influem em todos os aspectos do psiquismo e do comportamento humanos. E a sua separação, determinada por convenção académica, ou necessidade de simplificação, é sempre mutiladora.
Sim, Damásio tem desenvolvido trabalhos e teorias muito interessantes que, confesso, conheço pouco. Sei que é uma grande falha minha, mas nunca li as suas obras, somente artigos do autor ou de terceiros, sobre o mesmo. conto colmatar essa minha falha em breve!
Na minha perspectiva, gosto de analisar o funcionamento mental do Homem, vendo este como um Todo, segundo os binómios Emoção/Razão e Psíquico/Orgânico.
Por este motivo é que escolhi fazer o meu percurso profissional segundo a corrente Psicodinâmica. A meu ver, esta perspectiva é a mais completa de todas as que se praticam por cá, na medida em que tem em conta os processos mentais paralelamente aos físico/orgânico. As perpectivas que só têm em conta os processos mentais ou as que só têm em conta os sintomas, tornam-me um pouco reducionistas. Contudo, tenho consciência que todas são importantes, porque cada caso é um caso.
A psicossomática utiliza o termo «holismo» para designar essa visão integradora e multidimensional k referiste. Penso, sem certeza, que esse termo provém do inglês «whole», k designa um «todo». Partilho tb da tua opinião qd afirmas q a psicologia dinâmica é, nesse aspecto, «holística».
Quanto a Damásio, ele é, segundo a terminologia nortenha, «um senhor»:). Acho o «Erro de Descartes» especialmente interessante, embora ainda n tenha lido o seu último volume - «Ao Encontro de Espinoza».
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