quarta-feira, dezembro 27, 2006

A Fantasia do «Pai Natal»: Questões Simbólicas

Naquela que foi provavelmente uma das estratégias de marketing melhor sucedidas do último século a Coca-Cola criou a imagem do «Pai Natal» como a conhecemos. Do seu fato vermelho e branco ao trenó mágico, esse velhinho barbudo que universalizou a concepção natalícia possui as características que lhe permitem ser apreendido como uma figura simpática, afável e dócil, simultaneamente, aos olhos da criança e do adulto. Reconhecido por praticamente todas as civilizações ocidentais, o «S. Nicolau da Coca-Cola» faz sentido primeira e fundamentalmente a estas, tendo para elas sido criado e dirigido. É o «Pai Natal» a imagem de marca do Natal no ocidente. Muito embora a indignação de alguns que pretenderiam manter o conceito de Natal associado directamente a Jesus Cristo ou a qualquer outra entidade ou contexto, o facto é que, para a grande maioria das nossas crianças, o Natal é representado e internamente vivido pela imagem do «Pai Natal», dela sendo indissociável.

Pela forma como se intricou e se desenvolveu na nossa cultura, o «Pai Natal» adquiriu um estatuto que considero muito próximo daquele dos contos de fadas, representando para as crianças tanto ou mais do que a própria «Branca de Neve» ou «Cinderela». O «Pai Natal» preenche e amplia o imaginário dos mais pequenos, deleitando-os com a visão das suas renas a rasgar o céu e a expectativa de o ver chegar pela chaminé. Qualquer referência aos presentes deixa-os com um brilhozinho especial nos olhos, e a Noite de Natal é vivida por eles com enorme entusiasmo, alegria e excitação.

Por tudo isto fiquei curioso acerca da passibilidade de se analisar o conceito do «Pai Natal» sob um ponto de vista simbólico (no seu sentido psicanalítico). Nisso tive muito em conta o maravilhoso livro de Bruno Bettelheim «A Psicanálise dos Contos de Fadas», Bertrand Editora, pois acredito que a sua forma de abordagem deverá ser semelhante ou, pelo menos, partir dos mesmos princípios daquela que Bettelheim utiliza nos contos dos irmãos Grimm e das «Mil e Uma Noites». Não quero com isto dizer que a estrutura do conceito do «Pai Natal» seja tão organizadora e estruturante para uma criança como, por exemplo, «Hansel e Gretel» - aliás, acredito fielmente que não -, contudo não podia deixar de me indagar sobre o poder fantástico que a imagem do «Pai Natal» provoca aos olhos dela.

Será o conceito do «Pai Natal» interpretável do ponto de vista simbólico, no sentido psicanalítico do termo? Sem dúvida que ele põe em jogo o mundo imaginário e a fantasia da criança, mas elaborará ele simbolicamente este espaço transitivo, pondo em interacção diferentes instâncias do aparelho psíquico? Pessoalmente penso que não.


O «Pai Natal» tem por função, na Noite de Natal, a entrega dos presentes. Estes presentes que se recebem no Natal são (ou deveriam ser) a recompensa pelo «bom comportamento» da criança durante o ano. Aqui vejo uma clara referência à instância superegóica, tanto na sua prossecução (portar-se bem) como na sua finalidade (recompensa). No Natal a criança elabora uma retrospectiva acerca da forma como se comportou durante o ano, e tal apela indubitavelmente a uma comparação entre a percepção que a criança possui desse comportamento e a sua fantasia do que é o comportamento esperado pelos pais. Contudo, e por outro lado, o «mito» do Natal, ao contrário de outros contos de fadas, não elabora nem apela aos desejos inconscientes do Id, e muito menos ao seu conflito com a realidade ou outras instâncias psíquicas. Ele representa somente os desejos conscientes e, na grande maioria dos casos, os verbalmente incitados pela criança.

É por esta última razão que não considero que a fantasia do «Pai Natal» seja dotada de atributos simbólicos ao nível psicanalítico. Para o ser, ela teria de mobilizar vectores de forças inconscientes de forma dissimulada, daí a sua propriedade simbólica, bem como de as conjugar com forças opostas, conscientes ou não, cujo conflito permitisse uma elaboração dinâmica da sua temática. São estas características basilares que Bettelheim assume na sua obra e se propõe interpretar em vários contos que não consigo vislumbrar na fantasia do «Pai Natal». Esta última é preponderantemente pedagógica em vários sentidos (p.e., ao incitar na criança uma avaliação do seu comportamento), sendo interessante à criança porque põe em jogo a sua imaginação com elementos não possíveis de entrever na realidade externa (p.e., o trenó voador), e fundamentalmente porque lhe proporciona um momento de realização de desejos. Todavia, todos estes desejos são conscientemente reconhecidos pela criança, o que lhe proporciona uma realização deles sem elaboração propriamente dita de desejos mais profundos, inacessíveis, irrealizáveis ou proibidos.

quarta-feira, dezembro 20, 2006

Da «Ordem» vem a ordem…

Sob o estandarte daqueles que prosseguem (e ainda bem) os meandros da burocracia, do associativismo e da legislação democráticas os psicólogos portugueses caminham para a criação da sua Ordem, espera-se, no início de 2007.

A urgência da criação e estruturação definitivas deste organismo regulador revela-se pela necessidade, diz Telmo Baptista, de «regular a profissão para algumas questões como a boa prática profissional» (in Diário Digital – Agência Lusa). Sem dúvida. Mas o Presidente da Comissão Instaladora diz ainda que um dos grandes objectivos desta Ordem será o de «fazer com que os psicólogos sejam mais conhecidos enquanto profissionais e que sejam postos a trabalhar em prol da sociedade», e aqui reside, a meu ver, a maior necessidade dos psicólogos portugueses.

Se qualquer profissão apenas existe ou deve existir enquanto se revelar útil e instrumental para a sociedade na qual se encontra (chamemos a isto uma perspectiva sociológica funcional das profissões), a questão do seu conhecimento e/ou reconhecimento implica, por sua vez, um julgamento de qualidade e atributo que, inexoravelmente, a ultrapassa. Conhecemos variadas coisas, mas apenas reconhecemos aquilo ao qual atribuímos valor. Reconhecer implica, por assim dizer, um atributo de qualidade, um atestado de competência que confere estatuto, prestígio e idoneidade. Se o conhecimento da psicologia e dos psicólogos já não aparenta ser uma urgência fundamental (a proliferação dos seus assuntos e intervenções nos media e a criação de revistas e websites assim o parecem demonstrar), já o seu reconhecimento enquanto ciência do funcionamento mental e técnico especializado no seu saber, respectivamente, surge-nos como nuclear e imprescindível.

Uma das razões que se prende a este frágil reconhecimento da psicologia e da capacidade técnica do psicólogo assenta, precisamente, na sua fraca organização institucional, bem como na ausência de regulamentação e legislação aplicável que aprecie, afira e rectifique a sua prática. Além disso, a complexidade e plasticidade inolvidáveis da mente, que a põem presente em toda a actividade humana, tornam-na facilmente vulnerável a abordagens mais ou menos «alternativas», mais ou menos «para» («além» de qualquer coisa) – lembrando a metafísica pessoniana – que, não obstante a sua utilidade para muitos, obscurece e obnubila o campo de acção da psicologia, pondo em causa o seu objecto primordial.

Reside, pois, nesta Ordem que lentamente se afigura, a esperança e a expectativa de verdadeira ordem, o que não se espera fácil. Para o leitor atento, a própria história da psicologia deixa entrever as grandes dificuldades com que esta se deparou na sua afirmação epistemológica nos dois últimos séculos. Todavia, e sendo bem verdade que a era do positivismo acabou e que poucos actualmente partilham da mesma pedância de Auguste Comte, a qualidade do serviço do psicólogo emerge cada vez mais como uma premissa simultaneamente a atingir e a promover, ou melhor, a fazer conhecer e reconhecer.