quinta-feira, julho 27, 2006

Uma Nota sobre a Teoria Cognitivo-Comportamental

Tendo actualmente como principais referências os trabalhos de Beck, Lazarus e Ellis, a Teoria Cognitivo-Comportamental (TCC) conquistou um lugar de destaque no panorama teórico-prático da psicologia. Em Portugal já domina grande parte das instituições públicas de saúde e arrisca-se a ser a forma de abordagem predominante dos psicólogos e psiquiatras portugueses.
O meu conhecimento da TCC é maior na teoria beckiana do que em todas as outras, pelo que me limitarei a falar sobre esta, que aparenta ser a mais consensual mesmo entre os teóricos cognitivos.
É sabido que Aaron T. Beck era psicanalista antes de considerar que a psicanálise carecia de instrumentos práticos e terapêuticos (nomeadamente no campo da depressão) suficientemente eficazes para dar resposta ao sofrimento do doente. Descontente, desenvolveu então a sua teoria que dá conta de um constructo teórico de explicação da doença depressiva bem como de uma base terapêutica (entretanto porfiada pela sua filha Judith S. Beck) a seguir. Esse constructo assenta em alguns princípios comuns a todas as teorias cognitivas e enquadra-se no âmbito epistemológico cognitivo de base, contudo reportando-se de forma específica à descrição da psicoetiologia depressiva. E a sua ideia primordial é simples: a depressão é uma distorção do pensamento, um processamento de informação com erros cognitivos que provêm de estruturas de pensamento mais ou menos nucleares desadaptadas. E é, a meu ver, precisamente nesta ideia fundamental que reside o erro comum a todas as TCC.
A pedra angular do corpus teórico cognitivo reside na assunção de que é na distorção do pensamento que se dá a distorção do afecto. É nos erros cognitivos que deve ser procurada e onde deve ser eliminada a depressão. Para a TCC, o pensamento precede o afecto na medida em que são os erros do pensamento que originam um afecto indesejado.
Ora, muito antes de pensar e sequer raciocinar o ser humano sente. Os primeiros anos de vida são fundamentalmente experiências de sensações, de diferenciação somatopsíquica, que depois evoluirá para a construção de esquemas cognitivos. Cronologicamente, é o afecto que precede o pensamento, e não o contrário. A neurobiologia prova-nos a hierarquização das funções mentais, desde as profundezas do sistema límbico e diencefálico até à superfície neocortical; a lei de Haeckel deixa-nos sonhar que talvez a diferenciação progressiva do sistema nervoso num pequeno feto desde a sua concepção seja a repetição do que aconteceu em mais de 4 milhões de anos de evolução...
Em suma, inclino-me para aceitar que o sentimento é em todos os níveis anterior ao pensamento. Aliás, constitui a base para o desenvolvimento desse pensamento como os alicerces sustêm um edifício. A hipótese de Damásio, por exemplo, dos marcadores somáticos parece-me ter por base precisamente estas noções.

Da Capacidade de Amar

Foram as minhas reflexões acerca da psicologia das relações amorosas que me levaram a esta questão, que considero nuclear. É, sem dúvida, o amor que preenche ou deve preencher a relação amorosa e que justifica a sua existência. «Namorar» significa, literalmente, «estar em amor com», e a própria palavra «amor» surge no verbo «namorar» e no substantivo «namoro».
Então, o sucesso de uma relação amorosa passa, em primeiro lugar, pela capacidade dos seus intervenientes de «amar». E como se revela esta capacidade?
Parece-me que a capacidade de amar o Outro depende sempre da capacidade de se amar a si próprio. Aquele que não se ama dificilmente poderá amar outrem. Isto está obviamente relacionado com os conceitos de «amor narcísico» e «amor objectal» presentes na teoria psicanalítica. Para algumas facções, o amor narcísico é anterior ao objectal, ontogenética e estruturalmente falando. O segundo depende da qualidade do primeiro e jamais será conseguido em plenitude se esse primeiro alicerce não estiver devidamente estabelecido.
A minha experiência clínica e observacional tem-me permitido reforçar esta hipótese por meio do estudo das personalidades narcísicas. Deixou-me entrever que as personalidades com uma grave falha narcísica não amam propriamente o Outro, mas amam-se através dele. A sua relação com o outro situa-se num plano especular no qual o Outro é o espelho que lhe reflecte o amor investido. É o próprio Ego continente e conteúdo desse amor, ponto de partida e ponto de chegada. O historial amoroso destas personalidades encontra-se clivado em dois pólos opostos: o desinteresse total ou o apego exacerbado e dependente. Idealização e desidealização são os mecanismos que os sustêm, nos quais ainda jaz de fundo um mecanismo de clivagem do objecto ou das imagos. Em suma, trata-se de um amor narcísico e anobjectal, que reflecte por um lado a ferida narcísica e por outro as tentativas de a suturar.
Parece-me lógico considerar que nestas personalidades a incapacidade de amar objectalmente advém de uma falha do amor narcísico. Este raciocínio leva-nos então a perceber que o amor objectal é posterior ao amor narcísico e que do ponto de vista económico o Ego é o recipiente primordial, e somente a sua irrigação libinal quanto baste permitirá a partilha dessa mesma líbido. Nas personalidades narcísicas, o seu Ego/recipiente encontra-se permanentemente fissurado, o que origina um problema económico de raiz. O investimento «suficientemente bom» é-lhes frequentemente uma lida impossível, tanto no seu Ego como no Outro.

sexta-feira, julho 21, 2006

Uma Expressão Actual do Simbolismo Fálico (II)

Tendo recebido um feedback predominantemente positivo do post que precede este homólogo decidi aprofundar a reflexão e ponderar novas questões. Se, com efeito, o automóvel é, para os homens, um atributo fálico e uma representação de virilidade, põe-se inevitavelmente a contenda da expressão psicológica deste simbolismo no acto de condução.
Sendo a condução um processo complexo que compreende a manipulação do automóvel, poderá ela ser, simbolicamente, uma expressão da manipulação fálica? Uma representação do acto sexual?
Na minha óptica existe um investimento notório do acto de condução que se revela por meio da dualidade pulsional: as pulsões sexuais e agressivas impregnam a condução de significado que se manifesta na atitude do condutor. Parece-me bem possível que o estilo de condução reflicta, em última análise, a representação de virilidade e potência que o homem tem si próprio.
A agressividade e a ostentação de alguns condutores torna-se, assim, interpretável. Será o jogo pulsional entre Eros e Thanathos, bem como a representação fálica de si mesmo, que colorirá o acto de condução de posições activa/passiva, mais ou menos erotizadas. A condução agressiva, por exemplo, poderá relevar de uma posição activa/sádica, numa função narcisicamente reparadora. Em todos os casos, acredito que o homem impõe na forma como conduz o que desejaria impor ao seu falo – na velocidade extrema, uma expressão do Id (pela falha da pára-excitação); na moderação exagerada, uma instância superegóica dominante.
Sem dúvida que a actividade pulsional não surge sempre crua, exceptuando-se as personalidades psicóticas e borderline. Na grande maioria das pessoas esta encontra-se modulada e esfriada pela pára-excitação pré-consciente (em referência à 1.ª tópica). Não obstante, acredito que a situação de condução representa um momento em que são activadas, simultaneamente, a pressão pulsional e os mecanismos que a combatem, surgindo assim a atitude de condução sob a formação de compromisso entre ambas, demonstrando a capacidade de integração pulsional em forma de jogo.
Por isto, e a meu ver, o acto de condução não simboliza propriamente a relação sexual, mas antes a percepção que o indivíduo tem da sua potência fálica, sempre dependente da dinâmica interna e inter-sistémica.

quinta-feira, julho 13, 2006

«Amor» e «Paixão»: Um Exame Linguístico

Conceitos que pertencem à mesma rede semântica, mas que muitos acreditam designarem coisas diferentes, «amor» e «paixão» continuam a desempenhar um papel capital na vida fantasmática da sociedade. Preenchendo o imaginário de todos nós, são pré-requisito de uma vida de sucesso, alimentados desde a infância pelos contos de fadas até à vida adulta pelos media.
Por este post não me proponho a defini-los (essa tarefa é quase hercúlea), mas antes a tentar perceber onde divergem. Demasiado próximos entre eles, continuam a ser usados indiscriminadamente para definir uma mesma coisa, ou várias similares. Não criticando o seu uso indistinto, procurarei aclarar a diferença entre «amar» e «estar apaixonado por», dissemelhança que me parece suficientemente clara para ser assinalada sem necessidade de recurso a um estudo exaustivo.
Intimamente, penso que todos nós conhecemos essa diferença. Dizer um «eu amo-te» é de longe mais difícil e comprometedor (ou pelo menos deveria ser) do que um «estou apaixonado por ti», a não ser que se ame de facto. Da mesma forma, uma e a outra frase desembocam em duas interpretações diferentes para quem as ouve e recebe. Na minha óptica, a primeira (mas nunca única) razão para este reconhecimento implícito da diferença reside precisamente no recurso linguístico que cada frase utiliza.
Tomemos o exemplo das línguas germânicas. No inglês existe o «I love you» mas também o «I’m in love with you». O primeiro acaba por ser um homólogo do português «eu amo-te», enquanto o segundo declara algo como «estou em amor por ti», normalmente traduzido para o já referido «estou apaixonado por ti». Na língua inglesa não é muito comum, de facto, utilizar-se o termo «passion» adaptado às relações humanas, no sentido afectuoso que «paixão» contém na sua forma portuguesa. No alemão mantém-se esta regra. O mais comum «Ich liebe Dich» (ou «eu amo-te») poderá eventualmente ser substituído por «Ich bin in Dich verliebt» (ou «estou em amor por ti»), exactamente da mesma forma que a fórmula inglesa, conservando também a sua comum negligência pela «paixão».
Logo, nas línguas germânicas, ao invés de se usar o «estou apaixonado por ti» (utilizando assim o conceito de «paixão») opta-se por uma fórmula alternativa, e o que caracteriza esta fórmula é uma expulsão do amor enquanto objecto interno para um «locus» externo no qual o sujeito se «encontra». Enquanto o «I love you» e o «Ich liebe Dich» significam literalmente «eu amo-te», porquanto pressupõem uma internalização completa do «amor», «I’m in love with you» e «Ich bin in Dich verliebt» oferecem a impressão desse «amor» como um espaço extrínseco que é ocupado por aquele que o diz – «estou em amor por ti». É precisamente a preposição «em» (em ambas as línguas expresso na preposição «in») que dá conta de uma localização, mesmo de uma «situação», na qual o sujeito se encontra, bem diferente da impressão que fica de um «eu amo-te», cuja construção morfossintáctica testemunha uma verdadeira posse do «amor» pelo «eu».
E o que acontece nas línguas latinas? No português já se sabe, e é também conhecida «la pasión» espanhola. Mas o francês também não tem por hábito utilizar a «passion» no sentido referido. Tal como no inglês e no alemão, ela é preferencialmente utilizada para definir o gosto por fazer algo (uma profissão ou um hobby) ou por um objecto. Os franceses utilizam (talvez por isso sejam considerados românticos…) de forma indiscriminada o «je t’aime» ou, quando o amor quase não se segura, «je suis fou de toi» (literalmente «estou/sou louco por ti»), não possuindo uma fórmula alternativa equivalente às línguas portuguesa, inglesa e alemã.
É portanto nestes três idiomas que encontramos uma acepção fundamental: existem duas formas de se declarar o «amor» ou a «paixão» e, como visto, uma dessas formas é mais profunda do que a outra, afirmando um sentimento mais intenso e um outro nem tanto. No português, a distinção recai entre o uso dos conceitos «amor» ou «paixão», enquanto que nas línguas germânicas se usa somente o «amor», mas em construções morfossintácticas díspares que advogam a mesma distinção feita na língua de Camões. Como tal, a própria língua parece conhecer a diferença entre «amar» e «estar apaixonado por», e penso que um estudo mais aprofundado destas propriedades linguísticas seria extremamente útil na compreensão destes dois conceitos, tão próximos e ao mesmo tempo tão diferentes.
A ideia muito básica que fica deste exame é que «amor» designa algo mais sólido e perene do que a «paixão», sua equivalente mais frágil e efémera. Será que naquela noite no Rivoli, se a acompanhante do Carlos Tê não o tivesse abandonado, a música do Rui Veloso continuaria conhecida por «A Paixão»? E se ela tivesse feito um esforço para gostar daquela «música maluca»? Pessoalmente acho que o Rui Veloso jamais cantaria uma música assim… A «paixão» é e quer-se intensa mas fugaz.

segunda-feira, julho 10, 2006

Uma Expressão Actual do Simbolismo Fálico (I)

Um dos grandes ensinamentos que se retira da literatura freudiana é o de que muitos conceitos reenviam não só ao que são, mas também, e sobretudo, àquilo que representam. Ou melhor, que esses conceitos podem representar pelo menos duas significações, em que uma delas se substitui à outra, mascarando-a e exprimindo-a ao mesmo tempo. Refiro-me, claro está, à noção de «simbolismo» freudiano, cujos pontos fundamentais podem ser encontrados no «Vocabulário da Psicanálise», de Laplanche & Pontalis.
A psicanálise descobriu essa propriedade simbólica por meio de várias vias: (1) a interpretação dos sonhos; (2) o chiste ou humor popular; (3) a clínica psicanalítica. Os símbolos por ela descobertos são muito numerosos, mas o campo do simbolizado é restrito: corpo, pais e consanguíneos, nascimento, morte, nudez e, sobretudo, sexualidade. Em contraste, as formulações que irei aqui apresentar não passam de um mero exercício teórico, inspirado somente por uma reflexão, e cuja originalidade desconheço. Apesar de nunca ter lido nada sobre o assunto, não posso assumir que nada tenha sido escrito sobre ele.
Pretendo aqui lançar uma hipótese que postula a existência de uma atribuição simbólica do automóvel, enquanto símbolo fálico. Esta hipótese tem como fundamento o facto de que o automóvel é um conceito carregado de atributos de potência, afirmação, volume e vigor. Para isto penso que muito contribuem as medidas empregues para mensurar a qualidade do motor do automóvel: a cilindrada, medida em cm3, e que portanto apela às noções de tamanho e de volume; e os cavalos, animais carregados de simbolismo viril.
Uma das razões que me chamou à atenção para este facto foi a conhecida estima que o sexo masculino nutre pelos automóveis. Genericamente, através dos media, os homens devoram as últimas novidades de engenharia automóvel, dos modelos mais recentes e competitivos, dos motores de última geração. É também do conhecimento popular a relação íntima que o homem tem com o seu próprio automóvel. Note-se que, evidentemente, isto aplica-se de uma forma generalista, pois nem todos os homens têm especial afeição por automóveis.
Penso que (e volto a ressalvar, de uma forma geral) o automóvel é, para os homens, um atributo fálico, uma representação de virilidade que assume especial importância no momento da condução, na qual, aliás, encontro vários pontos de expressão do acto sexual (deixarei o aprofundamento desta analogia para uma próxima ocasião).
Exemplificando, não são incomuns as várias ocasiões em que se assiste a uma situação humorística desencadeada precisamente por essa atribuição fálica. É reconhecido o orgulho que os homens têm pelo seu pénis e muitas vezes esse brio é exposto, de forma caricata, por apelidos do pénis. De facto, o homem ostenta o orgulho que sente pelo seu pénis apelidando-o, mais ou menos secretamente, de vários conceitos que conservam competência viril. Um desses conceitos trata-se, precisamente, do conceito «automóvel», expresso por meio de modelos conhecidos e popularizados pela sua potência ou velocidade. Torna-se claro que, aqui, o homem utiliza simbolicamente o conceito de «automóvel» como forma de afirmação viril. Esse conceito assume, como tal, uma dupla significação, representando-se simultaneamente a si próprio e ao pénis. É precisamente esta característica que me leva a considerar a função simbólica do conceito (e não o termo) «automóvel».
Volto a referir que estas afirmações possuem um carácter meramente hipotético, decorrentes de uma ponderação teórica, e como tal perfeitamente discutíveis. Não obstante, reconheço-lhes a lógica suficiente para, primeiro, as expor aqui e, segundo, porfiar a minha reflexão.

sexta-feira, julho 07, 2006

Da «Verdade» e da «Mentira»

Foi no www.psisalpicos.blogspot.com (blog que, aliás, recomendo) que fui inicialmente confrontado com esta questão. Na altura, foi lançado o debate acerca da importância da sinceridade nas relações amorosas, tendo eu deixado um comentário que reproduzo aqui, agora mais aprofundado.
No mesmo debate lançou-se a ideia de que a sinceridade para com o outro implicava de forma sine qua non a sinceridade para com o próprio. A afirmação parecia lógica, mas obrigou-me a questionar: o que é ou como definir essa «sinceridade para consigo próprio»? E uma questão precedente a essa: o que é, afinal de contas, a «sinceridade»? É o mesmo que ser «verdadeiro»? Mas o «ser verdadeiro» implica consequentemente a distinção e o reconhecimento entre o que é «verdade» e o que é «mentira». E como se opera essa distinção? Para mim, é por esta última pergunta que se deve começar se se pretende uma resposta para todas as outras.
Estou convicto de que o discernimento da verdade e da mentira assenta, primordialmente, numa qualidade de crença ou convicção. E é esta qualidade (ou a ausência dela) que define a veracidade de um comportamento ou de uma afirmação (ou a sua falsidade). Por outras palavras, a verdade é, de forma última, aquilo em que se acredita. Quantas vezes não estamos perfeitamente convictos de algo que, vimos depois a saber, era completamente falso? Podemos (e devemos) depois reconhecer que estávamos errados, mas até àquela altura teríamos posto as mãos no fogo, de tão convencidos do que dizíamos! Na altura, aquela era a nossa verdade porque era nela em que acreditávamos! E com a mesma convicção como antes de Copérnico se acreditava que o Sol girava em torno da Terra!
Por exemplo, estou a ser verdadeiro quando digo a um amigo que ontem estive com a pessoa X porque estou convicto de que estive com ela e não com a pessoa Y ou Z. Da mesma forma, e alargando o exemplo, só posso aceitar Deus e a religião como verdadeiros a partir do momento em que creio neles. Inversamente, não estarei a ser verdadeiro comigo a partir do momento em que digo ou faço algo no qual não creio. A «verdade» e a «mentira» assumem, assim, um carácter extremamente subjectivo e idiossincrático. Elas não existem por si mesmas. É a nossa convicção, ou a falta dela, que as torna numa ou noutra, respectivamente.
Poder-se-ia também dizer: a qualidade do que é verdadeiro é a qualidade do que é real; por exemplo, agora sabe-se que na realidade é a Terra que gira em volta do Sol. E eu pergunto: o que é, então, real?
Para Immanuel Kant existiam duas formas de realidade: o númeno ou realidade numénica e o fenómeno ou realidade fenomenológica. Segundo o filósofo, a única realidade que nos era passível de conhecer seria a realidade fenomenológica, enquanto o númeno nos era inalcançável. Tentarei, agora, com base no que se conhece do psiquismo humano, tornar esta distinção mais inteligível e actual.
O ser humano possui um aparelho pelo qual se conhece a si próprio e ao mundo. Esse é, claro está, o Sistema Nervoso, que é constituído, em parte e muito basicamente, por um sistema central que armazena, codifica e processa informação – o encéfalo –, e por um aparato de sistemas de input que captam a informação vinda do exterior – os órgãos dos sentidos. É por estes últimos que começa a nossa percepção da realidade: vemos, ouvimos, cheiramos, tacteamos e saboreamos o mundo. Os órgãos dos sentidos produzem então sinais que são depois interpretados no encéfalo, que os armazena e processa. Desta forma, construímos a realidade pelo nosso sistema nervoso. Nunca temos uma percepção exacta dela, mas sim uma interpretação cuja aproximação à realidade numénica desconhecemos. A «nossa» realidade é, então, um processo e uma aproximação, em constante modificação e reestruturação; ela é, antes de mais nada, um «produto cognitivo».
«Verdade» e «mentira» são também, e por corolário, inteiramente produtos cognitivos, nos quais a sociedade impôs uma atribuição de valor. É por isso que as pessoas honestas são consideradas «boas pessoas» e as mentirosas são «más». É também devido a isso que nos ensinam, desde pequeninos, que «mentir é feio». E é também por isso que atribuímos importância à sinceridade numa relação amorosa.
Não considero correcto, como tal, entender a «verdade» e a «mentira» como dois atributos fechados em si próprios. Eles são conceitos, o resultado de uma elaboração mental, extremamente complexa, e sempre particular de cada indivíduo.
É claro que existem «verdades» socialmente difundidas. Todos sabemos, hoje em dia, que a Terra gira em torno do Sol. Mas mesmo essas «verdades» só o são porque se deu previamente um trabalho de elaboração cognitiva (por meio da aprendizagem), que lançou a nossa convicção. Nestes casos, a «verdade» é um bem comum e universalmente partilhado, porque transmitido culturalmente, de geração em geração.
Mas o nosso conceito daquilo que é «verdade» é, contudo, inteiramente nosso. O que é verdade para mim poderá não o ser para o outro. Porque a minha verdade é aquilo em que eu acredito, quer tenha sido educado para crer, quer tenha crido com a experiência. E tanto a minha educação como as minhas vivências serão, sempre, diferentes das desse Outro.

terça-feira, julho 04, 2006

Escritos para o Teste de Rorschach (I)

Desde a sua criação em 1921 pelo psiquiatra suíço Hermann Rorschach na monografia «Psychodyagnostik» que o Teste de Rorschach tem vindo a ser agraciado por uns e reprovado por outros. No extremo, uns e outros optaram por um cultismo exacerbado ou por um réprobo inabalável, ambas as posições pouco cientes das reais possibilidades de avaliação desta prova tão conhecida e popularizada.
Claro que no meio desta «rorschachfilia» e «rorschachfobia» encontram-se aqueles cuja posição é intermédia, podendo cair mais para um lado ou para o outro. A minha posição enquadra-se nesta linha média, mas no quadrante mais próximo do lado «fílico». Sem dúvida, sou um apreciador das grandes qualidades de poder analítico do Teste de Rorschach.
O seu princípio básico é quase evidente, de tão simples. O sujeito reestrutura as manchas seguindo os mesmos mecanismos com os quais estrutura a realidade. E com realidade pretendo designar todo o aparato de cognições que constituem o seu conhecimento: da realidade interna à realidade externa; do conhecimento de si ao conhecimento da alteridade. Embora a minha interpretação do Rorschach seja profundamente psicanalítica, penso que o paradigma da epistemologia cognitiva se adapta com natural perfeição a este caso, quando postula que o conhecimento é uma permanente construção. Assim, pretende-se que o sujeito construa a realidade das manchas com que se depara, num verdadeiro trabalho de pensamento cuja análise irá permitir perceber como, de resto, o sujeito estrutura a sua realidade lata. O Rorschach assume-se, então, como uma amostra de construção do conhecimento que, aliás, conserva os princípios de construção utilizados. Resta ao psicólogo descobrir e interpretar esses princípios para assim compreender a sua construção, assim como um geólogo infere os movimentos internos da litosfera ao analisar um estrato.
É legítimo colocar aqui uma questão: como se podem induzir com segurança os mecanismos de construção do conhecimento de uma entidade psicológica através da análise, por muito profunda que seja, de uma situação tão breve e insular? A isto também respondo: apesar de insólita, a situação-Rorschach é extremamente significante, pela simples razão de que se trata de uma fatia de vida, ou melhor, de uma fatia de construção. E é nesse estatuto que se encontra, por decifrar, o código de construção do indivíduo.
E como se devem descodificar esses princípios? Antes disso, quais são os princípios que regem o aparecimento da resposta-Rorschach? E como identificá-los? É aqui que termina a minha alusão à epistemologia cognitiva e entramos no âmbito da teoria psicanalítica. Porque estou convencido que uma actividade de construção como a da situação-Rorschach, onde a criatividade e a imaginação desempenham um papel fundamental, põe em jogo toda a vivência do indivíduo, integrando simultaneamente as dimensões cognitiva, afectiva e comportamental. Porque encontro na teoria psicanalítica uma riqueza de conteúdos e feixes interpretativos que não reconheço em nenhuma outra. E porque acredito nela.

Para um Prólogo

Todos os dias cada um de nós é confrontado com a vida. Isto é tão mais verdade quanto os dias passam e as experiências se acumulam por detrás de nós. E todos os dias nos apercebemos da complexidade da vida. O trabalho, a família, os amigos e o lazer, todo o nosso dia-a-dia está repleto de pontos de interrogação, que no percurso de cada dia ficam sem resposta, naquele dia e no outro, todos os dias.
Este blog parte com um objectivo simples: encarar as indagações e confrontá-las com uma resposta. Sendo da minha autoria, ele foi criado para responder às minhas questões, porquanto decorrentes da minha vida. E como questões complexas requerem respostas complexas, estas tomarão o ponto de vista da psicologia, nomeadamente da psicologia dinâmica e psicanalítica, correntes interpretativas com o poder suficiente para dar respostas minimamente inteligíveis e articuladas.
Contudo, não colocarei aqui somente questões derivadas do âmbito da psicologia, já que isto se trata de um blog e não de uma qualquer revista científica. Parto do princípio que tudo é passível de se questionar, e não hesitarei em pôr de parte a psicologia se achar, em qualquer altura, que ela não me leva onde eu almejo chegar.
Se publico em forma de blog questões que coloco a mim próprio, é porque penso que elas não são somente minha propriedade. Se o pensasse, nunca as publicaria, uma vez que «publicar» significa literalmente «tornar público». Estou até convencido que muitas das minhas questões encontrarão eco noutras pessoas e noutras mentes que, como eu, se indagam. É, aliás, nessa convicção que se encontra toda a razão de ser deste blog.