quinta-feira, janeiro 25, 2007

Da «Normalidade»: A Estrutura Psíquica e a Metáfora Freudiana do «Cristal»

Etimologicamente, a palavra «normalidade» tem raiz na sua palavra-mãe «norma» que, como é conhecido, remete a conceitos semelhantes a «doutrina», «regra», «regulamento» ou «lei». Norma designa, por isso, a qualidade do que é habitual, adaptado, usual e partilhado. Contudo, e no que respeita à «normalidade» psíquica, a sua aplicação conceptual do ponto de vista unicamente estatístico está longe de ser satisfatória, e mesmo adicionando-lhe critérios como sejam a qualidade de «sentir-se doente» – i.e., a sua avaliação subjectiva –, ou outros critérios estipulados pelo conhecimento psiquiátrico, a grande maioria das teorizações de «normalidade» e de «saúde mental» são, a meu ver, perfeitamente estéreis, a não ser esta que considero uma muito agradável excepção:

«O verdadeiro indivíduo “saudável” não é simplesmente alguém que se declara como tal, nem, sobretudo, um doente que se ignore, mas um sujeito que conserva em si tantas fixações conflituais quanto as outras pessoas, e que não teria encontrado no seu caminho dificuldades internas ou externas superiores ao seu equipamento afectivo hereditário ou adquirido, às suas faculdades pessoais defensivas ou adaptativas, e que se permitiria um jogo bastante flexível das suas necessidades pulsionais, dos seus processos primário e secundário, nos planos quer pessoais quer sociais, tendo em justa conta a realidade, e reservando-se o direito de se comportar de modo aparentemente aberrante em circunstâncias excepcionalmente “anormais”» [in Bergeret, J. (2000). «A Personalidade Normal e Patológica», p.21. Lisboa: Climepsi Editores].

A «normalidade» surge, aqui, formulada de um ponto de vista metapsicológico, pela utilização de conceitos como sejam os processos primário e secundário, o aparato defensivo e as moções pulsionais. Mais do que isso, está presente nesta afirmação o carácter de continnum entre a «normalidade» e a patologia, concepção que considero muito mais importante e fértil do que a suposição de uma quebra/barreira mais ou menos estanque entre o funcionamento psíquico saudável e mórbido. Com efeito, o indivíduo saudável é um sujeito «que conserva em si tantas fixações conflituais quanto as outras pessoas», e que no seu jogo entre as suas necessidades, medos, fixações, desejos e mobilização defensiva não tenha encontrado no seu caminho de vida as dificuldades e traumatismos que permitissem a sua descompensação. Atenda-se, agora, ao que Freud explanou nas suas «Novas Conferências Introdutórias Sobre Psicanálise – Conferência XXXI» [1933 (1932)]:

«Se atirarmos um cristal ao chão, ele parte-se; mas não em estilhaços ao acaso. Ele divide-se, ao longo das linhas de clivagem, em fragmentos cujos limites, embora invisíveis, estão predeterminados pela estrutura do cristal».

Para Freud, o mesmo aconteceria com a estrutura psíquica. Gradualmente, a partir do nascimento (provavelmente até antes), em função da hereditariedade para certos factores, mas sobretudo do modo de relação estabelecido com as figuras de referência desde os primeiros momentos de vida, das frustrações, traumatismos e conflitos encontrados, em função também das defesas mobilizadas pelo Ego para fazer face às pressões internas e externas e das pulsões do Id e da realidade, paulatina e lentamente o psiquismo individual organiza-se, «cristaliza-se» tal como um corpo químico complexo, tal como um mineral cristalizado, com linhas de clivagem originais e que já não podem variar ulteriormente. Como tal, a sua descompensação (a quebra do cristal) não se realizará de uma forma aleatória, mas segundo e seguindo essas linhas e pontos de clivagem pré-estabelecidos em toda a ontogenia individual e que perfazem as fragilidades individuais de todo e cada um de nós.

Assim sendo, a necessidade de elaboração de um diagnóstico estrutural por conceptualização de uma estrutura da personalidade advém da necessidade de se diagnosticar reportando-se a uma organização clara e precisa do funcionamento profundo e economia psíquica bem como a referenciais de estrutura conhecidos pela sua estabilidade funcional e temporal. Só assim se pode atingir uma compreensão profunda do funcionamento psíquico do sujeito e, consequentemente, como este deve ser abordado e tratado.

quarta-feira, janeiro 17, 2007

«Ser» Doente / «Estar» Doente

Genericamente, «ser» remete a um traço, e «estar» a um estado. Por traço entende-se uma característica inerente, invariável e estruturante de algo, enquanto que a noção de estado remete para uma dimensão mais transitória, causal/acidental e não estruturante. Por conseguinte, «ser» algo implica o juízo predefinido de que nunca vamos deixar de o ser, e «estar» acarreta a ideia preconcebida de que, mais cedo ou mais tarde, iremos mudar. Tal diferença de conceito está obviamente alicerçada na semiologia precisa subjacente às noções de «ser» e de «estar», e a sua utilização parece-me extremamente útil do ponto de vista clínico, uma vez que ela pode permitir a noção de transitoriedade do sofrimento psíquico do paciente, bem como a descentralização da patologia no seu Eu.

A percepção do paciente, para o clínico, induz de forma inevitável a sua atitude clínica e terapêutica. Para adquirir uma função realmente terapêutica, é necessário existir, da parte do clínico, uma tomada de intelecção do paciente como pessoa, ao invés de uma patologia. A história, os desejos, medos, valores, princípios, sonhos e ambições do paciente devem ser tomados como fundamentais, numa curiosidade verdadeiramente humana, relacional e emotiva.

Não existe nenhum médico, psicólogo, psicanalista ou psicoterapeuta que trate doenças. Todo o clínico trata, sim, pessoas que sofrem de uma doença. Nenhuma patologia existe per si, dissociada do corpo e da mente de quem afecta. Como tal, o clínico deve focalizar a sua percepção, nuclearmente, na pessoa do paciente que se encontra afectado pela doença. A pessoa não «é» doente, no sentido de que a doença define quem ele é, mas quem ele é «está» afectado pela doença, mesmo que se trate de uma patologia crónica e/ou progressiva.

É extremamente importante realçar esta distinção, tanto para o clínico como para o paciente. Para o primeiro ela revela-se na necessidade de uma atitude compreensiva, verdadeiramente clínica, direccionada para um encontro/contacto relacional que se pretende proficiente e terapêutico. Para o segundo, estabelecer a diferença entre ele próprio e a sua doença permite-lhe compreender que ele não é meramente um calvário do seu diagnóstico, mas uma pessoa tão real e digna de respeito como qualquer outra que, infelizmente, sofre. A doença deve ser sempre realçada ao paciente como uma característica, conquanto indesejável, acessória e nunca definitiva ou reveladora de quem ele(a) é como ser humano. Insistir na distinção dizendo que «você não é ansioso(a), você é uma pessoa que sofre de ansiedade» permite perceber ao paciente a real distinção entre aquilo que é o seu diagnóstico e aquilo que o define como pessoa.

Uma grande parte da responsabilidade de os pacientes se submergirem no peso rotulador do seu diagnóstico é, ironicamente, dos próprios clínicos, que muitas vezes são facilmente seduzidos pelos tratados de psicopatologia, critérios de seriação sintomática, descrições psicopatológicas e taxonomias nosográficas, reduzindo todo o conhecimento que poderiam obter do seu paciente ao seu sextante bibliográfico (como por exemplo o DSM-IV), o que desemboca inevitavelmente no trilho antagónico àquele que é, por definição, clínico: em vez de adaptarem o seu conhecimento aos pacientes, adaptam os pacientes ao conhecimento…

Por esta razão é extremamente importante que os próprios clínicos se descentrem da sua visão psicopatológica e distante da vivência do paciente, elaborando para si mesmos a distinção entre o que é a sua patologia e a pessoa que dela padece. Simultaneamente, fazer entender a mesma distinção ao próprio paciente no sentido de obter um reforço da autonomia do Ego permitir-lhe-á desprender-se dos conceitos associados à doença mental e adquirir um sentimento de controlo (ainda que mínimo) sobre si mesmo e o seu futuro.

quinta-feira, janeiro 11, 2007

Do Diagnóstico Psicológico: Vantagens e Limites

A questão do diagnóstico é um ponto fundamental de qualquer disciplina clínica e/ou terapêutica. Ele assenta num conjunto de conhecimentos acerca da psicopatologia e referencia uma determinada entidade patológica conhecida por intermédio de critérios cuja relação com a patologia em causa se considera relevante, significativa ou mesmo patognomónica. A elaboração de um diagnóstico implica um trabalho rigoroso de avaliação, interpretação e conhecimento do paciente e a sua importância não deve ser descurada. Contudo, por vezes acarreta consequências cuja gravidade iguala ou excede a da própria patologia, pelo que a sua utilização e divulgação devem ser, sempre, consideradas e tidas em conta.

O diagnóstico é útil? Sem dúvida. Para o clínico, a elaboração do diagnóstico consiste num ponto de orientação, uma referência fundamental para o trabalho terapêutico. Com efeito, antes de se decidir para onde se quer ir, é necessário ter consciência de onde se está. Todo o trabalho clínico com o paciente deve ter em conta, sempre, o seu modo específico de funcionamento mental, a sua organização da personalidade, o seu tipo de angústia, mecanismos de defesa predilectos, nível de organização do Ego, jogo inter-sistémico e principais conflitos. Pela minha orientação dinâmica, considero que o diagnóstico deve ser, sempre que possível, um diagnóstico estrutural, psicanaliticamente formado, que condense em simultâneo não só a patologia que afecta o doente mas também o seu quadro de organização personológica que o sustém. Além disso, o diagnóstico é principalmente útil no âmbito da investigação e da comunicação entre clínicos de diferentes países e referenciais teóricos; apenas com uma determinada homogeneização conceptual é possível comunicar com diferentes pessoas acerca de uma (considera-se) mesma coisa. Mais, várias vezes torna-se claro que o diagnóstico é útil também para o paciente. Existem muitas pessoas que sofrem acrescidamente pela ignorância daquilo que os afecta. Sentem necessidade de saber. Esse saber confere-lhes, em alguns casos, uma sensação de domínio sobre si mesmos e o que os afecta, o que é de inolvidável valor terapêutico. Assim sendo, se o clínico julgar a priori benéfico para o paciente dar-lhe conhecimento do nome daquilo que o afecta, ele deve fazê-lo. Caso o clínico pressinta que o conhecimento do paciente só o fará aterrar depressivamente ou imergir num sentimento de culpa ou vergonha, ele então deverá considerar o real valor terapêutico dessa tomada de conhecimento, por muita necessidade que o paciente tenha em saber.

Quanto aos limites da formulação diagnóstica, esses prendem-se principalmente com as consequências muitas vezes gravíssimas que acarretam. Erros ainda mais crassos acontecem na clínica infantil, onde por inúmeras vezes os clínicos se esquecem da maleabilidade e mutabilidade do funcionamento psíquico da criança catalogando-o com uma facilidade assustadora de diagnósticos que acarretam conotações pesadas de gravidade e cronicidade. Não raras vezes se encontram crianças com 11 ou 12 anos com uma interacção social e vida emocional sadias que aos 4 ou 5 receberam um diagnóstico de autismo ou síndrome de Asperger. Também na adolescência se assiste facilmente a surtos psicóticos provocados por substâncias ou desorganizações mais ou menos insólitas (ex: bouffés délirants, psicoses canábicas, tóxicas) que auferem desde logo um diagnóstico extremamente pessimista de esquizofrenia. Sempre que o diagnóstico seja derrotista, isto é, que preveja apenas cronicidade ou um processo mórbido de degeneração ele deve ser evitado ou substituído por outro que contenha uma conotação mais mutável e menos encarceradora, sempre que possível (o caso das disarmonias evolutivas na clínica infantil é disso exemplo). É claro que existem verdadeiras esquizofrenias, psicoses maníaco-depressivas e autismos, e nestes casos também pouco há de bom em criar no paciente e na sua família expectativas demasiado altas que possam facilmente cair por terra. Contudo, na maioria dos casos e principalmente na clínica infantil diagnostica-se demasiado facilmente e de ânimo leve sem a mínima consciência do impacto que o nome de uma doença psíquica provoca no narcisismo e na integridade da pessoa.

Em todos os casos, o psicólogo deve pôr a questão da utilidade clínica do diagnóstico e assegurar-se de que o faz ou comunica apenas quando acreditar que isso seja benéfico para o paciente, evidentemente, se essa decisão couber apenas a si.

segunda-feira, janeiro 08, 2007

Elogio da Dúvida

«Só por existir
Só por duvidar
Tenho duas almas em guerra
E sei que nenhuma vai ganhar

Só por ter dois sóis
Só por hesitar
Fiz a cama na encruzilhada
E chamei casa a esse lugar

E anda sempre alguém por lá
Junto à tempestade
Onde os pés não têm chão
E as mãos perdem a razão

Só por inventar
Só por destruir
Tenho as chaves do céu e do inferno
E deixo o tempo decidir

E anda sempre alguém por lá
Junto à tempestade
Onde os pés não têm chão
E as mãos perdem a razão

Só por existir
Só por duvidar
Tenho duas almas em guerra
E sei que nenhuma vai ganhar
Eu sei que nenhuma vai ganhar»

(Jorge Palma - «Só»)

A representação total da dúvida e da incapacidade de decidir. Simplesmente fantástica, esta letra.