quinta-feira, maio 10, 2007

Psicologia / Psiquiatria

Actualmente um dos principais problemas que o psicólogo – nomeadamente o psicólogo clínico – enfrenta é a sua subalternização face ao psiquiatra. Este último, detentor do poder médico, assume no sistema de saúde uma posição que nada mais é senão o status quo especular do pensamento social, o qual entende a ciência e a medicina como os expoentes máximos de uma cultura de procura da verdade científica.

O poder médico começa por ser um poder mágico-religioso, independentemente daquele que o exerce (curandeiro, feiticeiro, sacerdote, físico ou cirurgião), tanto nas sociedades primitivas como nas sociedades complexas. Esse poder baseia-se sobretudo na crença de que a cura da doença, embora operada por forças divinas, exige a intervenção de um medium dotado de um dom ou carisma. Não é por acaso que o termo terapeuta (do grego therapeutés) significava originalmente «o que cuida, servidor ou adorador de um deus». Contudo, na sociedade actual temos de considerar que o poder médico está intimamente associado a um outro tipo de poder que é o poder da ciência, do «facto» e da «verdade científica» – o dogma do século XXI. Ciência e tecnologia são os dois bastiões da medicina actual bem como da veritas de qualquer outra coisa. Elas testemunham e definem aquilo em que devemos ou não acreditar, assumindo assim um carácter (também ele) mágico-religioso na medida em que o seu valor austero, de cariz peremptório, normaliza a sociedade nas suas convicções.

A psiquiatria usufrui de ambos estes poderes, que na realidade são apenas um, e o seu sentido manifesta-se na biologização do comportamento humano. Este processo, necessariamente redutor, encontra actualmente a sua manifestação instrumental por meio do medicamento, o qual é o método utilizado pelo psiquiatra para modificar o comportamento. A redução do ser humano ao biológico permite assim à psiquiatria considerar a sua omnipotência científica no que respeita à compreensão do psiquismo humano.

Por seu turno, a psicologia, provinda de uma escola de pensamento de tonalidade mais hermenêutica, não partilha deste poder médico. Por si só este facto explica a dificuldade do psicólogo em impor a sua prática, uma vez que a sociedade se encontra na necessidade premente de uma «segurança» médica e científica em tudo na sua vida, o que obviamente inclui o tipo de tratamento que deseja para si. Sendo óbvio que a psicologia possui um carácter científico, ao não partilhar a visão biologizante do ser humano conforme assumida pela psiquiatria ela está necessariamente a prescindir do poder médico que a beneficiaria.

A perspectiva biopsicossocial do ser humano conforme utilizada pela psicologia dinâmica parte de um pressuposto holístico que acima de tudo respeita a complexidade humana ao considerar que o seu estudo deve ser multifocal. Ela proporciona uma visão integral do ser e do adoecer que compreende as dimensões biológica, psicológica e social. Deve a psicologia fazer conhecer a sua perspectiva, impondo-se por aquilo que é e por aquilo em que acredita. Para isso devem contribuir principalmente os próprios psicólogos, que devem respeitar e fazer respeitar o seu trabalho.

«We live in a society exquisitely dependent on science and technology, in which hardly anyone knows anything about science and technology»

Carl Sagan

terça-feira, maio 08, 2007

A Função Materna: Perspectiva de Winnicott

A teoria psicanalítica de Donald Woods Winnicott permite que se atente para uma forma particular de compreender a constituição do ser como uma entidade unitária - «o si mesmo» -, assim constituindo uma importante mudança de paradigma em relação à psicanálise tradicional. Essa «constituição do ser» está, para Winnicott, menos ligada ao Édipo, mas fundamentalmente assente na relação de identificação primária da mãe com o seu bebé.

Assim, de acordo com Winnicott, o ser humano parte de um estado de não-integração inical, com tendências herdadas para o amadurecimento e com a necessidade de outro ser humano para esse amadurecimento ter lugar. Ele vai precisar de uma mãe-ambiente-continente que se identifique com ele e o ajude na sua integração, ou seja, a perceber-se no tempo e no espaço, reconhecendo-se no seu corpo e na realidade, permitindo uma vivência de omnipotência que é importante, neste início de vida, para combater a ameaça de falta de controle sobre o que se apresenta. A mãe, nesta fase, é um objecto subjectivo, parte do bebé, caracterizando um estado fusional ou de «dois em um». A integração, que tem início na elaboração imaginativa das funções do corpo, vai-se ampliando de acordo com os movimentos do bebé, abarcando também o seu relacionamento com o mundo externo.

Contudo, Winnicott não considerava que a possibilidade de a mãe se tornar o ambiente favorável para o bebé fosse dependente apenas de uma boa condição interna dela. Para o autor, ela precisa, também, de um ambiente que a assegure durante essa fase, o que Winnicott acreditava ser um papel paterno inicial. O pai precisa de sustentar o estado materno de preocupação, precisa de proporcionar à mãe um suporte, impedindo que ela se ocupe com coisas alheias à sua relação com o bebé.

É esse ambiente total - pai e mãe no exercício dos seus papéis - que vai permitir ao bebé o desenvolvimento do seu Eu. Ele assim vai experienciando os seus momentos de tranquilidade e impulsividade. O seu sentido de realidade vai sendo desenvolvido em função da sobrevivência repetida do objecto aos seus impulsos, o que lhe transmite a diferença entre facto e fantasia e, no seu devido tempo, entre realidade externa e interna. O bebé chega, assim, ao estádio do concernimento, no qual descobre a externalidade, percebe-se como um Eu separado de um não-Eu e começa a preocupar-se com as consequências da sua impulsividade. Somente a partir deste ponto poderá este bebé viver o complexo de Édipo, pois agora ele terá a organização interna que lhe permita experienciar a relação com um Outro.

quarta-feira, abril 04, 2007

Da Amizade no Homem e na Mulher

Na vigésima página do Jornal de Notícias de 28 de Março – Edição Porto – encontrei uma notícia que se refere aos resultados de uma investigação realizada no Centro de Pesquisa sobre Mudança Sócio-Cultural da Universidade de Manchester. Este núcleo, na sua maioria constituído por sociólogos coordenados por Gindo Tampubolon, estudou dez mil indivíduos ao longo de quatro anos e chegou à conclusão assim apresentada pelo JN: «as mulheres são “melhores” na amizade do que os homens». Não são referidas quaisquer informações acerca do procedimento e/ou metodologia desta investigação, salvo duas informes: a franja socio-económica que abarca e o esclarecimento do seu apoio financeiro por parte da Comissão Europeia.

Diz o coordenador no Núcleo que a amizade demonstrada por uma mulher «é mais profunda e mais moral (os sublinhados são meus), na medida em que o que está em causa é a relação em si e não aquilo que se poderá ganhar com ela». Ainda de acordo com o Dr. Tampubolon a mulher na amizade «dá pouca importância à distância a que o outro mora ou ao estrato social a que pertence». Mais, as mulheres encaram a amizade «como uma forma de se expressarem e de formar a sua própria identidade», enquanto os homens procuram «o que há nisso que seja do seu interesse».

Devo dizer que compreendo a mensagem que o Dr. Tampubolon e a sua equipa tentaram transmitir. É bem sabido que as diferenças psicológicas e sociológicas entre os dois géneros são tão mais evidentes quanto as colocarmos no plano relacional, e elas encontram expressão se considerarmos os últimos trabalhos feitos nessa área, os quais primam por duas vertentes: a neuropsicológica e a filogenética. As conclusões primordiais destas disciplinas têm produzido conhecimentos interessantes, os quais, grosso modo, podem ser resumidos em alguns pontos, necessariamente incompletos: as diferenças neuroanatómicas e neurofisiológicas encontradas no cérebro de homens e mulheres levaram ao conceito de «dimorfismo cerebral» no caso do cérebro feminino, o qual permite às mulheres melhor desenvolvimento de competências como a interpretação emocional (em suma, capacidade de contacto emocional), sensibilidade social e fluência verbal. Por outro lado, a configuração neurológica do cérebro masculino conferiu-lhe melhor apetência no raciocínio espacial, mecânico e instrumental, e a «personalidade masculina» é, de facto, bem marcada pelo seu pragmatismo (Tampubulon diria «interesse», eu digo «pragmatismo»).

A nível de desenvolvimento psicológico as diferenças são também claras e denunciam a melhor habilidade do sexo feminino na interacção social, o qual pode ser visto por vários pontos de vista (desde uma abordagem mais sociológica a uma outra mais psicanalítica), os quais não irei expor aqui. Em suma, as conclusões apresentadas por esta equipa referem-se a diferenciais de género que se conhecem há muito e que têm vindo a ser estudado por várias disciplinas.

O que, a meu ver, esta equipa de investigadores realmente conseguiu fazer foi dar um estéril exemplo daquilo que deve ser investigação científica. As conclusões citadas e retiradas do próprio coordenador da investigação transmitem um juízo de valor perfeitamente manifesto bem como uma certa arrogação de conceitos de moralidade. Quem lê esta notícia fica com a ideia de que o homem é um amigo «interesseiro» e «egoísta», incapaz da «verdadeira amizade» que está apenas ao alcance da mulher. Não são minimamente exploradas as bases científicas que explicam o comportamento social dos dois géneros – não é, aliás, tomada nenhuma atitude explicativa –, as quais enquadrariam estas conclusões num campo mais condigno ao da investigação científica.

sexta-feira, março 23, 2007

Psicólogos que não podem ensinar Psicologia

Li recentemente na página do Sindicato Nacional dos Psicólogos um daqueles comunicados de profundo carácter político (um mal necessário), no qual a Direcção do dito organismo expressava veementemente a sua revolta face à interdição dos psicólogos para leccionar a disciplina de Psicologia no Ensino Secundário. Nesse insurrecto texto pareceu-me, a mim – um sujeito pouco ligado a estas coisas da governação, mas consciente da sua pertinência e indispensabilidade –, que os argumentos pouco sapientes dos vários Executivos que ao longo dos anos passearam a sua ordem pelo País foram perfeitamente desprestigiados pela lógica e razão apresentados pelo Sindicato. Reafirmando a minha ignorância perante estas temáticas, não posso contudo deixar de referir que a equação na mesa me parece demasiado simples para justificar várias discussões a ela concernentes, pelo que tentarei expor aqui a minha modesta opinião de forma despretensiosa.

Tendo em conta a conjuntura sócio-económica deste Portugal em que vivo, as razões desta pequena falácia parecem-me ter proveniência, a começar, num preciso móbil: dinheiro, ou a falta dele. É que contratar psicólogos para leccionar Psicologia implica por ventura pagar-lhes pelo serviço, o que nesta altura parece uma diligência demasiado crítica para o módico Orçamento de Estado que teima em ser módico há demasiados anos consecutivos. Além do mais existem os licenciados em Filosofia que, aparentemente, têm de ser postos a fazer alguma coisa além de leccionar Filosofia, e como pôr um licenciado na disciplina de Kant e Descartes a ensinar Matemática ou Biologia tornaria o absurdo demasiado evidente (não obstante o grande contributo de Descartes para ambas) opta-se assim por uma outra solução, a qual apenas parece menos disparatada porque a diferença entre Filosofia e Psicologia ainda é suficientemente esbatida para não ser clara. Para isto muito contribuiu a própria Psicologia, que não conseguiu ainda emancipar-se completamente das suas raízes e afirmar-se categoricamente como uma disciplina individualizada, científica e única, pese embora a sua idade juvenil e as suas dificuldades de crescimento em Portugal, por razões várias e pouco importantes para o tema deste post.

Sendo uma das minhas disciplinas predilectas, a Filosofia surge-me como uma reflexão importantíssima da «existência» e do «ser», no exercício da abstracção e das dúvidas humanas fundamentais – «quem somos, de onde vimos, para onde vamos?» –, e sem dúvida que a Psicologia lhe deve muito desde os tratados da alma na Antiguidade Grega. Mas estará um licenciado em Filosofia habilitado a leccionar Psicologia? Absolutamente que não. Desde o ano de 1879 em Leipzig que a Psicologia tenta (quase desesperadamente) assumir-se e personalizar-se, qual disciplina adolescente em plena fase de identificação, absorvendo contributos de várias outras áreas consideradas «científicas» para não lhe ser posto em causa o seu estatuto de «cientificidade». Actualmente a Psicologia conseguiu, a meu ver, um grau respeitável de emancipação, mas este continua a não possuir a robustez necessária à perfeita compreensão, por parte da comunidade, do seu exercício, método e objectivos. Esta parece-me ser a razão mais importante de «confusões» deste tipo.

Considero equivalentemente absurda a ideia de um licenciado em Psicologia ter habilitações para leccionar Filosofia. São disciplinas diferentes, com diferentes abordagens, objecto e balizas, que devem ser veiculadas por pessoas com formação na área. É um direito e dever do psicólogo poder leccionar Psicologia, pois apenas ele possui legitimidade para o fazer.

quinta-feira, fevereiro 22, 2007

Da «Neutralidade Benevolente» na Clínica Infantil

A expressão «neutralidade benevolente» no ensino da psicologia clínica como referencial do que deve constituir a atitude do psicólogo atingiu, já, um valor quase axiomático. Esta, tal como a sua própria construção morfológica, anuncia um paradoxo interessante, quase winnicottiano, que o psicólogo deve aceitar e empreender e que se revela numa atitude simultaneamente imparcial e empática, neutra mas disponível – dir-se-ia até passivamente activa – que simultaneamente aceite a entrega do paciente e permita a sua livre expressão, libertando-o da antecipação de preconceitos e recebendo empaticamente a sua queixa e pedido, latentes e manifestos.

Será esta uma atitude aconselhável a promover na clínica com adultos? Sem dúvida. Já na clínica com a criança arrisco dizer que não.

Acredito que para a criança, grosso modo, tudo o que é neutro é absolutamente desinteressante. Esta apenas se mobiliza para um objecto desde que este a desperte para isso. Seja através de cores, formas ou sons apelativos, o objecto necessita de se provar interessante aos olhos de uma criança. Para o ser, ele deve conservar características de vivacidade, dinâmica, animação e movimento, características estas que, como é reconhecido, despertam a atenção da criança. Só assim poderá o objecto, enquanto tal, captar o seu interesse. Da mesma forma que esse objecto, o terapeuta necessita de conquistar a atenção da criança assumindo as características que a apelam e interagir com ela numa base relacional dinâmica mobilizada pelo jogo e pela brincadeira.

O conceito de «neutralidade benevolente», na clínica infantil, perde assim todo o sentido e proficiência clínica. A atitude do terapeuta com a criança deve basear-se numa busca constante da sua atenção e participação activas, não esquecendo, obviamente, as especificidades idiossincráticas de cada criança como ser único, individual e irrepetível (várias crianças diferentes suportam níveis de actividade diferentes, e se para algumas será terapêutico interagir com elas de forma intensa, para outras será efectivamente o contrário). Não obstante a subjectividade necessariamente imposta, o terapeuta infantil deve impor no espaço clínico uma postura dinâmica e activa bastante diferente da requerida nos adultos. A actividade, principalmente a actividade criativa, é o cerne nuclear de toda a psicoterapia infantil: é no jogo e na brincadeira que o funcionamento psíquico da criança se torna interpretável e sujeito à psicoterapia.

É óbvio que a psicoterapia de adultos não se caracteriza por uma adopção da passividade, seja por parte do paciente ou do clínico. É precisamente a qualidade da escuta activa que define e posiciona o papel do terapeuta. Conquanto, se o adulto possui a priori a capacidade de verbalizar o seu estado interno, as suas problemáticas, fantasmas e desejos, a criança, por seu turno, não a tem. E este facto consititui per si a pedra angular na diferença de atitude clínica do terapeuta com o adulto e com a criança. Se no primeiro as técnicas da entrevista permitem a clarificação, dissecação e devolução ao paciente adulto do material verbalizado e não verbalizado, no segundo é o clínico que tem necessariamente de procurar de forma activa esse mesmo material, por intermédio de metodologias bem diferentes daquelas utilizadas na entrevista.

A construção e reconstrução da história, experiência e vivências do paciente são, em todos os casos, o núcleo funcional da psicoterapia. O como fazer, ou seja, as componentes tecnológica e metodológica é que se devem adaptar às necessidades particulares de cada situação. Se com os adultos o processo de construção/reconstrução é acessível por intermédio da linguagem falada, com as crianças esse mesmo processo acontece somente nos mundos do jogo e da imaginação, simbolicamente ricos, férteis à interpretação e (re)elaboração e, como tal, à intervenção psicoterapêutica.

quinta-feira, fevereiro 08, 2007

A Internet e a Exposição Pessoal do Psicólogo

Numa altura de ascensão e domínio da Internet como meio privilegiado de comunicação na sociedade internacional, nela imperando os sites de relacionamento social (como sejam o Hi5 e o MySpace, blogs pessoais, fotoblogs e semelhantes), assiste-se tendencialmente a um movimento de aproximação centrípeto nunca antes visto entre a comunidade, o qual fez com que a Time Magazine honrasse todos os utilizadores da Internet com o título de Person of the Year 2006.

Na cover story desse número da Time, Lev Grossman afirma que a Internet, na sua versão actual, «is a massive social experiment», terminando com uma reflexão, a meu ver, muito interessante: «this is an opportunity to build a new kind of international understanding, not politician to politician, great man to great man, but citizen to citizen, person to person». Sem dúvida, esta tendência mudará o mundo e o relacionamento pessoal tal como o entendemos hoje, afectando todas as faixas etárias e classes sociais, o qual não exclui, obviamente, os psicólogos.

Tal facto leva-nos a questionar o que irá acontecer com a protecção da individualidade do psicólogo e as suas consequências na actividade profissional. Aliás, esta questão põe-se já actualmente, tendo em conta a proliferação e o impacto de sites de relacionamento social, do quais o maior representante em Portugal é o Hi5.

Na literatura científica predomina o conceito que defende a individualidade e a neutralidade do psicólogo, devendo os seus aspectos pessoais como gostos, preferências, valores e referências manter-se ocultos ao paciente. Se até há pouco tempo tudo isso se encontrava protegido, reservado ao círculo social do psicólogo, hoje basta um clique para aceder à sua página do Hi5 ou ao seu blog e com isso conhecer a sua individualidade.

Que tipo de consequências serão acarretadas se tal acontecer numa relação clínica? Se a neutralidade do psicólogo, o seu carácter «cinzento» e desconhecido, constituem uma das suas principais ferramentas clínicas e torna a própria relação terapêutica numa relação diferente de uma amizade ou companheirismo (não só este facto, mas também ele), o que se espera com este trespassar de limites e fronteiras?

Considero esta uma questão muito pertinente e actual, pelo que convido todos os visitantes deste blog a dar a sua opinião sobre ela.

quinta-feira, janeiro 25, 2007

Da «Normalidade»: A Estrutura Psíquica e a Metáfora Freudiana do «Cristal»

Etimologicamente, a palavra «normalidade» tem raiz na sua palavra-mãe «norma» que, como é conhecido, remete a conceitos semelhantes a «doutrina», «regra», «regulamento» ou «lei». Norma designa, por isso, a qualidade do que é habitual, adaptado, usual e partilhado. Contudo, e no que respeita à «normalidade» psíquica, a sua aplicação conceptual do ponto de vista unicamente estatístico está longe de ser satisfatória, e mesmo adicionando-lhe critérios como sejam a qualidade de «sentir-se doente» – i.e., a sua avaliação subjectiva –, ou outros critérios estipulados pelo conhecimento psiquiátrico, a grande maioria das teorizações de «normalidade» e de «saúde mental» são, a meu ver, perfeitamente estéreis, a não ser esta que considero uma muito agradável excepção:

«O verdadeiro indivíduo “saudável” não é simplesmente alguém que se declara como tal, nem, sobretudo, um doente que se ignore, mas um sujeito que conserva em si tantas fixações conflituais quanto as outras pessoas, e que não teria encontrado no seu caminho dificuldades internas ou externas superiores ao seu equipamento afectivo hereditário ou adquirido, às suas faculdades pessoais defensivas ou adaptativas, e que se permitiria um jogo bastante flexível das suas necessidades pulsionais, dos seus processos primário e secundário, nos planos quer pessoais quer sociais, tendo em justa conta a realidade, e reservando-se o direito de se comportar de modo aparentemente aberrante em circunstâncias excepcionalmente “anormais”» [in Bergeret, J. (2000). «A Personalidade Normal e Patológica», p.21. Lisboa: Climepsi Editores].

A «normalidade» surge, aqui, formulada de um ponto de vista metapsicológico, pela utilização de conceitos como sejam os processos primário e secundário, o aparato defensivo e as moções pulsionais. Mais do que isso, está presente nesta afirmação o carácter de continnum entre a «normalidade» e a patologia, concepção que considero muito mais importante e fértil do que a suposição de uma quebra/barreira mais ou menos estanque entre o funcionamento psíquico saudável e mórbido. Com efeito, o indivíduo saudável é um sujeito «que conserva em si tantas fixações conflituais quanto as outras pessoas», e que no seu jogo entre as suas necessidades, medos, fixações, desejos e mobilização defensiva não tenha encontrado no seu caminho de vida as dificuldades e traumatismos que permitissem a sua descompensação. Atenda-se, agora, ao que Freud explanou nas suas «Novas Conferências Introdutórias Sobre Psicanálise – Conferência XXXI» [1933 (1932)]:

«Se atirarmos um cristal ao chão, ele parte-se; mas não em estilhaços ao acaso. Ele divide-se, ao longo das linhas de clivagem, em fragmentos cujos limites, embora invisíveis, estão predeterminados pela estrutura do cristal».

Para Freud, o mesmo aconteceria com a estrutura psíquica. Gradualmente, a partir do nascimento (provavelmente até antes), em função da hereditariedade para certos factores, mas sobretudo do modo de relação estabelecido com as figuras de referência desde os primeiros momentos de vida, das frustrações, traumatismos e conflitos encontrados, em função também das defesas mobilizadas pelo Ego para fazer face às pressões internas e externas e das pulsões do Id e da realidade, paulatina e lentamente o psiquismo individual organiza-se, «cristaliza-se» tal como um corpo químico complexo, tal como um mineral cristalizado, com linhas de clivagem originais e que já não podem variar ulteriormente. Como tal, a sua descompensação (a quebra do cristal) não se realizará de uma forma aleatória, mas segundo e seguindo essas linhas e pontos de clivagem pré-estabelecidos em toda a ontogenia individual e que perfazem as fragilidades individuais de todo e cada um de nós.

Assim sendo, a necessidade de elaboração de um diagnóstico estrutural por conceptualização de uma estrutura da personalidade advém da necessidade de se diagnosticar reportando-se a uma organização clara e precisa do funcionamento profundo e economia psíquica bem como a referenciais de estrutura conhecidos pela sua estabilidade funcional e temporal. Só assim se pode atingir uma compreensão profunda do funcionamento psíquico do sujeito e, consequentemente, como este deve ser abordado e tratado.

quarta-feira, janeiro 17, 2007

«Ser» Doente / «Estar» Doente

Genericamente, «ser» remete a um traço, e «estar» a um estado. Por traço entende-se uma característica inerente, invariável e estruturante de algo, enquanto que a noção de estado remete para uma dimensão mais transitória, causal/acidental e não estruturante. Por conseguinte, «ser» algo implica o juízo predefinido de que nunca vamos deixar de o ser, e «estar» acarreta a ideia preconcebida de que, mais cedo ou mais tarde, iremos mudar. Tal diferença de conceito está obviamente alicerçada na semiologia precisa subjacente às noções de «ser» e de «estar», e a sua utilização parece-me extremamente útil do ponto de vista clínico, uma vez que ela pode permitir a noção de transitoriedade do sofrimento psíquico do paciente, bem como a descentralização da patologia no seu Eu.

A percepção do paciente, para o clínico, induz de forma inevitável a sua atitude clínica e terapêutica. Para adquirir uma função realmente terapêutica, é necessário existir, da parte do clínico, uma tomada de intelecção do paciente como pessoa, ao invés de uma patologia. A história, os desejos, medos, valores, princípios, sonhos e ambições do paciente devem ser tomados como fundamentais, numa curiosidade verdadeiramente humana, relacional e emotiva.

Não existe nenhum médico, psicólogo, psicanalista ou psicoterapeuta que trate doenças. Todo o clínico trata, sim, pessoas que sofrem de uma doença. Nenhuma patologia existe per si, dissociada do corpo e da mente de quem afecta. Como tal, o clínico deve focalizar a sua percepção, nuclearmente, na pessoa do paciente que se encontra afectado pela doença. A pessoa não «é» doente, no sentido de que a doença define quem ele é, mas quem ele é «está» afectado pela doença, mesmo que se trate de uma patologia crónica e/ou progressiva.

É extremamente importante realçar esta distinção, tanto para o clínico como para o paciente. Para o primeiro ela revela-se na necessidade de uma atitude compreensiva, verdadeiramente clínica, direccionada para um encontro/contacto relacional que se pretende proficiente e terapêutico. Para o segundo, estabelecer a diferença entre ele próprio e a sua doença permite-lhe compreender que ele não é meramente um calvário do seu diagnóstico, mas uma pessoa tão real e digna de respeito como qualquer outra que, infelizmente, sofre. A doença deve ser sempre realçada ao paciente como uma característica, conquanto indesejável, acessória e nunca definitiva ou reveladora de quem ele(a) é como ser humano. Insistir na distinção dizendo que «você não é ansioso(a), você é uma pessoa que sofre de ansiedade» permite perceber ao paciente a real distinção entre aquilo que é o seu diagnóstico e aquilo que o define como pessoa.

Uma grande parte da responsabilidade de os pacientes se submergirem no peso rotulador do seu diagnóstico é, ironicamente, dos próprios clínicos, que muitas vezes são facilmente seduzidos pelos tratados de psicopatologia, critérios de seriação sintomática, descrições psicopatológicas e taxonomias nosográficas, reduzindo todo o conhecimento que poderiam obter do seu paciente ao seu sextante bibliográfico (como por exemplo o DSM-IV), o que desemboca inevitavelmente no trilho antagónico àquele que é, por definição, clínico: em vez de adaptarem o seu conhecimento aos pacientes, adaptam os pacientes ao conhecimento…

Por esta razão é extremamente importante que os próprios clínicos se descentrem da sua visão psicopatológica e distante da vivência do paciente, elaborando para si mesmos a distinção entre o que é a sua patologia e a pessoa que dela padece. Simultaneamente, fazer entender a mesma distinção ao próprio paciente no sentido de obter um reforço da autonomia do Ego permitir-lhe-á desprender-se dos conceitos associados à doença mental e adquirir um sentimento de controlo (ainda que mínimo) sobre si mesmo e o seu futuro.

quinta-feira, janeiro 11, 2007

Do Diagnóstico Psicológico: Vantagens e Limites

A questão do diagnóstico é um ponto fundamental de qualquer disciplina clínica e/ou terapêutica. Ele assenta num conjunto de conhecimentos acerca da psicopatologia e referencia uma determinada entidade patológica conhecida por intermédio de critérios cuja relação com a patologia em causa se considera relevante, significativa ou mesmo patognomónica. A elaboração de um diagnóstico implica um trabalho rigoroso de avaliação, interpretação e conhecimento do paciente e a sua importância não deve ser descurada. Contudo, por vezes acarreta consequências cuja gravidade iguala ou excede a da própria patologia, pelo que a sua utilização e divulgação devem ser, sempre, consideradas e tidas em conta.

O diagnóstico é útil? Sem dúvida. Para o clínico, a elaboração do diagnóstico consiste num ponto de orientação, uma referência fundamental para o trabalho terapêutico. Com efeito, antes de se decidir para onde se quer ir, é necessário ter consciência de onde se está. Todo o trabalho clínico com o paciente deve ter em conta, sempre, o seu modo específico de funcionamento mental, a sua organização da personalidade, o seu tipo de angústia, mecanismos de defesa predilectos, nível de organização do Ego, jogo inter-sistémico e principais conflitos. Pela minha orientação dinâmica, considero que o diagnóstico deve ser, sempre que possível, um diagnóstico estrutural, psicanaliticamente formado, que condense em simultâneo não só a patologia que afecta o doente mas também o seu quadro de organização personológica que o sustém. Além disso, o diagnóstico é principalmente útil no âmbito da investigação e da comunicação entre clínicos de diferentes países e referenciais teóricos; apenas com uma determinada homogeneização conceptual é possível comunicar com diferentes pessoas acerca de uma (considera-se) mesma coisa. Mais, várias vezes torna-se claro que o diagnóstico é útil também para o paciente. Existem muitas pessoas que sofrem acrescidamente pela ignorância daquilo que os afecta. Sentem necessidade de saber. Esse saber confere-lhes, em alguns casos, uma sensação de domínio sobre si mesmos e o que os afecta, o que é de inolvidável valor terapêutico. Assim sendo, se o clínico julgar a priori benéfico para o paciente dar-lhe conhecimento do nome daquilo que o afecta, ele deve fazê-lo. Caso o clínico pressinta que o conhecimento do paciente só o fará aterrar depressivamente ou imergir num sentimento de culpa ou vergonha, ele então deverá considerar o real valor terapêutico dessa tomada de conhecimento, por muita necessidade que o paciente tenha em saber.

Quanto aos limites da formulação diagnóstica, esses prendem-se principalmente com as consequências muitas vezes gravíssimas que acarretam. Erros ainda mais crassos acontecem na clínica infantil, onde por inúmeras vezes os clínicos se esquecem da maleabilidade e mutabilidade do funcionamento psíquico da criança catalogando-o com uma facilidade assustadora de diagnósticos que acarretam conotações pesadas de gravidade e cronicidade. Não raras vezes se encontram crianças com 11 ou 12 anos com uma interacção social e vida emocional sadias que aos 4 ou 5 receberam um diagnóstico de autismo ou síndrome de Asperger. Também na adolescência se assiste facilmente a surtos psicóticos provocados por substâncias ou desorganizações mais ou menos insólitas (ex: bouffés délirants, psicoses canábicas, tóxicas) que auferem desde logo um diagnóstico extremamente pessimista de esquizofrenia. Sempre que o diagnóstico seja derrotista, isto é, que preveja apenas cronicidade ou um processo mórbido de degeneração ele deve ser evitado ou substituído por outro que contenha uma conotação mais mutável e menos encarceradora, sempre que possível (o caso das disarmonias evolutivas na clínica infantil é disso exemplo). É claro que existem verdadeiras esquizofrenias, psicoses maníaco-depressivas e autismos, e nestes casos também pouco há de bom em criar no paciente e na sua família expectativas demasiado altas que possam facilmente cair por terra. Contudo, na maioria dos casos e principalmente na clínica infantil diagnostica-se demasiado facilmente e de ânimo leve sem a mínima consciência do impacto que o nome de uma doença psíquica provoca no narcisismo e na integridade da pessoa.

Em todos os casos, o psicólogo deve pôr a questão da utilidade clínica do diagnóstico e assegurar-se de que o faz ou comunica apenas quando acreditar que isso seja benéfico para o paciente, evidentemente, se essa decisão couber apenas a si.

segunda-feira, janeiro 08, 2007

Elogio da Dúvida

«Só por existir
Só por duvidar
Tenho duas almas em guerra
E sei que nenhuma vai ganhar

Só por ter dois sóis
Só por hesitar
Fiz a cama na encruzilhada
E chamei casa a esse lugar

E anda sempre alguém por lá
Junto à tempestade
Onde os pés não têm chão
E as mãos perdem a razão

Só por inventar
Só por destruir
Tenho as chaves do céu e do inferno
E deixo o tempo decidir

E anda sempre alguém por lá
Junto à tempestade
Onde os pés não têm chão
E as mãos perdem a razão

Só por existir
Só por duvidar
Tenho duas almas em guerra
E sei que nenhuma vai ganhar
Eu sei que nenhuma vai ganhar»

(Jorge Palma - «Só»)

A representação total da dúvida e da incapacidade de decidir. Simplesmente fantástica, esta letra.