quinta-feira, maio 10, 2007

Psicologia / Psiquiatria

Actualmente um dos principais problemas que o psicólogo – nomeadamente o psicólogo clínico – enfrenta é a sua subalternização face ao psiquiatra. Este último, detentor do poder médico, assume no sistema de saúde uma posição que nada mais é senão o status quo especular do pensamento social, o qual entende a ciência e a medicina como os expoentes máximos de uma cultura de procura da verdade científica.

O poder médico começa por ser um poder mágico-religioso, independentemente daquele que o exerce (curandeiro, feiticeiro, sacerdote, físico ou cirurgião), tanto nas sociedades primitivas como nas sociedades complexas. Esse poder baseia-se sobretudo na crença de que a cura da doença, embora operada por forças divinas, exige a intervenção de um medium dotado de um dom ou carisma. Não é por acaso que o termo terapeuta (do grego therapeutés) significava originalmente «o que cuida, servidor ou adorador de um deus». Contudo, na sociedade actual temos de considerar que o poder médico está intimamente associado a um outro tipo de poder que é o poder da ciência, do «facto» e da «verdade científica» – o dogma do século XXI. Ciência e tecnologia são os dois bastiões da medicina actual bem como da veritas de qualquer outra coisa. Elas testemunham e definem aquilo em que devemos ou não acreditar, assumindo assim um carácter (também ele) mágico-religioso na medida em que o seu valor austero, de cariz peremptório, normaliza a sociedade nas suas convicções.

A psiquiatria usufrui de ambos estes poderes, que na realidade são apenas um, e o seu sentido manifesta-se na biologização do comportamento humano. Este processo, necessariamente redutor, encontra actualmente a sua manifestação instrumental por meio do medicamento, o qual é o método utilizado pelo psiquiatra para modificar o comportamento. A redução do ser humano ao biológico permite assim à psiquiatria considerar a sua omnipotência científica no que respeita à compreensão do psiquismo humano.

Por seu turno, a psicologia, provinda de uma escola de pensamento de tonalidade mais hermenêutica, não partilha deste poder médico. Por si só este facto explica a dificuldade do psicólogo em impor a sua prática, uma vez que a sociedade se encontra na necessidade premente de uma «segurança» médica e científica em tudo na sua vida, o que obviamente inclui o tipo de tratamento que deseja para si. Sendo óbvio que a psicologia possui um carácter científico, ao não partilhar a visão biologizante do ser humano conforme assumida pela psiquiatria ela está necessariamente a prescindir do poder médico que a beneficiaria.

A perspectiva biopsicossocial do ser humano conforme utilizada pela psicologia dinâmica parte de um pressuposto holístico que acima de tudo respeita a complexidade humana ao considerar que o seu estudo deve ser multifocal. Ela proporciona uma visão integral do ser e do adoecer que compreende as dimensões biológica, psicológica e social. Deve a psicologia fazer conhecer a sua perspectiva, impondo-se por aquilo que é e por aquilo em que acredita. Para isso devem contribuir principalmente os próprios psicólogos, que devem respeitar e fazer respeitar o seu trabalho.

«We live in a society exquisitely dependent on science and technology, in which hardly anyone knows anything about science and technology»

Carl Sagan

terça-feira, maio 08, 2007

A Função Materna: Perspectiva de Winnicott

A teoria psicanalítica de Donald Woods Winnicott permite que se atente para uma forma particular de compreender a constituição do ser como uma entidade unitária - «o si mesmo» -, assim constituindo uma importante mudança de paradigma em relação à psicanálise tradicional. Essa «constituição do ser» está, para Winnicott, menos ligada ao Édipo, mas fundamentalmente assente na relação de identificação primária da mãe com o seu bebé.

Assim, de acordo com Winnicott, o ser humano parte de um estado de não-integração inical, com tendências herdadas para o amadurecimento e com a necessidade de outro ser humano para esse amadurecimento ter lugar. Ele vai precisar de uma mãe-ambiente-continente que se identifique com ele e o ajude na sua integração, ou seja, a perceber-se no tempo e no espaço, reconhecendo-se no seu corpo e na realidade, permitindo uma vivência de omnipotência que é importante, neste início de vida, para combater a ameaça de falta de controle sobre o que se apresenta. A mãe, nesta fase, é um objecto subjectivo, parte do bebé, caracterizando um estado fusional ou de «dois em um». A integração, que tem início na elaboração imaginativa das funções do corpo, vai-se ampliando de acordo com os movimentos do bebé, abarcando também o seu relacionamento com o mundo externo.

Contudo, Winnicott não considerava que a possibilidade de a mãe se tornar o ambiente favorável para o bebé fosse dependente apenas de uma boa condição interna dela. Para o autor, ela precisa, também, de um ambiente que a assegure durante essa fase, o que Winnicott acreditava ser um papel paterno inicial. O pai precisa de sustentar o estado materno de preocupação, precisa de proporcionar à mãe um suporte, impedindo que ela se ocupe com coisas alheias à sua relação com o bebé.

É esse ambiente total - pai e mãe no exercício dos seus papéis - que vai permitir ao bebé o desenvolvimento do seu Eu. Ele assim vai experienciando os seus momentos de tranquilidade e impulsividade. O seu sentido de realidade vai sendo desenvolvido em função da sobrevivência repetida do objecto aos seus impulsos, o que lhe transmite a diferença entre facto e fantasia e, no seu devido tempo, entre realidade externa e interna. O bebé chega, assim, ao estádio do concernimento, no qual descobre a externalidade, percebe-se como um Eu separado de um não-Eu e começa a preocupar-se com as consequências da sua impulsividade. Somente a partir deste ponto poderá este bebé viver o complexo de Édipo, pois agora ele terá a organização interna que lhe permita experienciar a relação com um Outro.