Etimologicamente, a palavra «normalidade» tem raiz na sua palavra-mãe «norma» que, como é conhecido, remete a conceitos semelhantes a «doutrina», «regra», «regulamento» ou «lei». Norma designa, por isso, a qualidade do que é habitual, adaptado, usual e partilhado. Contudo, e no que respeita à «normalidade» psíquica, a sua aplicação conceptual do ponto de vista unicamente estatístico está longe de ser satisfatória, e mesmo adicionando-lhe critérios como sejam a qualidade de «sentir-se doente» – i.e., a sua avaliação subjectiva –, ou outros critérios estipulados pelo conhecimento psiquiátrico, a grande maioria das teorizações de «normalidade» e de «saúde mental» são, a meu ver, perfeitamente estéreis, a não ser esta que considero uma muito agradável excepção:
«O verdadeiro indivíduo “saudável” não é simplesmente alguém que se declara como tal, nem, sobretudo, um doente que se ignore, mas um sujeito que conserva em si tantas fixações conflituais quanto as outras pessoas, e que não teria encontrado no seu caminho dificuldades internas ou externas superiores ao seu equipamento afectivo hereditário ou adquirido, às suas faculdades pessoais defensivas ou adaptativas, e que se permitiria um jogo bastante flexível das suas necessidades pulsionais, dos seus processos primário e secundário, nos planos quer pessoais quer sociais, tendo em justa conta a realidade, e reservando-se o direito de se comportar de modo aparentemente aberrante em circunstâncias excepcionalmente “anormais”» [in Bergeret, J. (2000). «A Personalidade Normal e Patológica», p.21. Lisboa: Climepsi Editores].
A «normalidade» surge, aqui, formulada de um ponto de vista metapsicológico, pela utilização de conceitos como sejam os processos primário e secundário, o aparato defensivo e as moções pulsionais. Mais do que isso, está presente nesta afirmação o carácter de continnum entre a «normalidade» e a patologia, concepção que considero muito mais importante e fértil do que a suposição de uma quebra/barreira mais ou menos estanque entre o funcionamento psíquico saudável e mórbido. Com efeito, o indivíduo saudável é um sujeito «que conserva em si tantas fixações conflituais quanto as outras pessoas», e que no seu jogo entre as suas necessidades, medos, fixações, desejos e mobilização defensiva não tenha encontrado no seu caminho de vida as dificuldades e traumatismos que permitissem a sua descompensação. Atenda-se, agora, ao que Freud explanou nas suas «Novas Conferências Introdutórias Sobre Psicanálise – Conferência XXXI» [1933 (1932)]:
«Se atirarmos um cristal ao chão, ele parte-se; mas não em estilhaços ao acaso. Ele divide-se, ao longo das linhas de clivagem, em fragmentos cujos limites, embora invisíveis, estão predeterminados pela estrutura do cristal».
Para Freud, o mesmo aconteceria com a estrutura psíquica. Gradualmente, a partir do nascimento (provavelmente até antes), em função da hereditariedade para certos factores, mas sobretudo do modo de relação estabelecido com as figuras de referência desde os primeiros momentos de vida, das frustrações, traumatismos e conflitos encontrados, em função também das defesas mobilizadas pelo Ego para fazer face às pressões internas e externas e das pulsões do Id e da realidade, paulatina e lentamente o psiquismo individual organiza-se, «cristaliza-se» tal como um corpo químico complexo, tal como um mineral cristalizado, com linhas de clivagem originais e que já não podem variar ulteriormente. Como tal, a sua descompensação (a quebra do cristal) não se realizará de uma forma aleatória, mas segundo e seguindo essas linhas e pontos de clivagem pré-estabelecidos em toda a ontogenia individual e que perfazem as fragilidades individuais de todo e cada um de nós.
Assim sendo, a necessidade de elaboração de um diagnóstico estrutural por conceptualização de uma estrutura da personalidade advém da necessidade de se diagnosticar reportando-se a uma organização clara e precisa do funcionamento profundo e economia psíquica bem como a referenciais de estrutura conhecidos pela sua estabilidade funcional e temporal. Só assim se pode atingir uma compreensão profunda do funcionamento psíquico do sujeito e, consequentemente, como este deve ser abordado e tratado.
7 comentários:
Se formos pensar o que é normal e o que é anormal nesta dita sociedade normal , que de normal só tem o nome, chegamos à conclusão que vivemos, cada vez mais numa sociedade onde os considerados anormais são normais que se recusaram a aceitar a anormalidade reinante e não a conseguem acatar....ou seja, não querem seguir as regras da normalidade, enquanto os ditos normais, dos quais eu faço parte, seguem a sua vida acatada por tantas anormalidades que chego a pensar que existem mais anormais cá fora (mundo normal?)do que nos centros de saúde mental!!!
Será que também sou anormal, dentro da minha suposta normalidade?????
Um bom fim de semana.
PARABÉNS pelo blog! Gosto de aqui passar, embora ainda não tivesse postado porque gosto muito de psicologia (essencialmente da criança)que estudei aprofundadamente na especialidade de saúde infantil e pediátrica. Obrigada pela visita ao meu cantinho!
Muito obrigado, Rosa, pelo seu comentário e pelas suas palavras de incentivo. E seja bem-vinda a este espaço.
Quanto ao que disse desta sociedade «normal», recomendo-lhe o seguinte: um livro de João dos Santos, intitulado «A Casa da Praia», que manifesta de uma forma acutilante precisamente as contradições que referiu.
Também eu sou um grande apreciador da psicologia infantil. Prometo postar, numa breve altura, qualquer coisa do seu agrado.
Cumprimentos.
Parabéns pelo blog.
Muito interessante e bem escrito.
Esse tema lembrou-me alguns aspectos abordados no livro "Personalidade Normal e Patológica" de Bergeret.
impressionante como alguns termos em psicanalise são usados ao bel prazer.
"A estrutura psiquica "é um deles. A metafora do -cristal-,aqui muito bem lembrado ,acredito, encerra o assunto.
impressionante como alguns termos em psicanalise são usados ao bel prazer.
"A estrutura psiquica "é um deles. A metafora do -cristal-,aqui muito bem lembrado ,acredito, encerra o assunto.
impressionante como alguns termos em psicanalise são usados ao bel prazer.
"A estrutura psiquica "é um deles. A metafora do -cristal-,aqui muito bem lembrado ,acredito, encerra o assunto.
apesar de acreditarmos em nós mesmos como seres normais muitas pessoas classificam somente qem tem problemas como anormais,deixando de alto avaliar o sei proprio comportamento em sociedade como todo.
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